Ainda é cedo quando os alunos chegam à penitenciária feminina de Ribeirão Preto, onde aproximadamente 350 mulheres cumprem pena por diferentes tipos de crimes. Ao contrário do que acontece quando entram em um hospital, lá é preciso primeiro passar por uma rigorosa revista. Dos habituais instrumentos de trabalho, apenas o jaleco, o estetoscópio, uma caneta e o crachá de identificação do hospital são permitidos.
Acompanhados por uma supervisora de ensino, os estudantes de medicina têm uma importante missão: prestar atendimento nas áreas de ginecologia e obstetrícia às presas, o que inclui a realização de exames como papanicolau e avaliação de mamas para detecção precoce de possíveis casos de câncer.
“No começo é estranho porque é totalmente diferente da nossa realidade. Atendemos presos no hospital, mas nunca havíamos atendido essas pessoas na própria penitenciária”, relata Patrícia de Souza Pinto, estudante do 5º ano do curso de medicina.
A iniciativa é pioneira no Brasil. Começou de forma isolada com o trabalho simultâneo de dois docentes da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (FMRP) da USP; um deles, a professora Carolina Sales Vieira Macedo, do Departamento de Ginecologia e Obstetrícia, desenvolvendo trabalho com grupo de estudantes do 5º ano. “Em 2011, acontecia a reformulação curricular do curso de medicina e uma das propostas era levar o aluno à comunidade, ou seja, descentralizar o ensino. Estávamos justamente procurando por outros cenários onde os alunos pudessem aprender. Em uma de minhas visitas à penitenciária estadual feminina, onde voluntariamente prestava orientações às presas, observei 300 mulheres, uma sala de atendimento e faltando quem? Médico! Então, nesse momento, pensei que seria muito interessante o aluno da USP ter contato com uma realidade que não faz parte do seu dia a dia. Ele ajudaria aquela comunidade e também seria ajudado, não só na sua formação médica, mas também na humanística”.
Constatar a importância de colocar em prática um projeto que pudesse atender esta demanda e contribuir para uma formação mais completa do aluno foi o primeiro passo para que a disciplina se tornasse obrigatória. Atualmente, todos os alunos do 5º ano do curso de medicina da FMRP prestam atendimento na penitenciária feminina quando passam pelo Internato em Saúde da Mulher I. Eles são divididos em grupos de dois alunos e realizam os atendimentos sempre às segundas e terças-feiras.
“Foi a primeira disciplina nacional em que o estudante começa a perceber como o paciente confinado se comporta, quais as doenças mais comuns numa penitenciária, desmistificar que é seguro trabalhar dentro de uma penitenciária, que as pessoas que estão ali privadas de liberdade nos tratam muito bem. Hoje tem médico que não quer nem ir porque tem medo, acha que não vai ser bem tratado ou que o ambiente não é seguro”, afirma a professora.
Projeto semelhante é desenvolvido por um colega de Carolina, o professor Antonio Pazin Filho, do Departamento de Clínica Médica e coordenador da Unidade de Emergência (UE) do Hospital das Clínicas da FMRP. Desta vez, o trabalho é realizado na penitenciária masculina de Ribeirão Preto, com importante apoio, desde o início, da professora Luciane Loures, do Departamento de Medicina Social.
“Nós tínhamos muitos pacientes presidiários que eram trazidos para a UE. Um dia, chegou um com uma escolta, com metralhadora, e eu fiquei preocupado com a segurança dos outros pacientes porque se aquilo disparasse, nós teríamos um acidente. Aí eu questionei o capitão da PM e ele me disse que era necessário trazer os presos ao hospital porque na penitenciária não tinha médico”.
A afirmação chamou a atenção do professor, que decidiu visitar a penitenciária. Lá descobriu que, apesar de não disponibilizar condições ideais, havia medicamentos e condições de trabalho para atendimento médico no local, além, claro, de oferecer mais segurança do que um posto de saúde. O argumento para que isso não fosse realizado era a falta de interesse de médicos, que tinham receio de trabalhar em presídios.
“Resolvemos então criar uma disciplina optativa para alunos do 4º ano, que se chama Medicina de Confinamento, e o interesse dos estudantes foi muito bom. No ano passado, oferecemos duas vezes e, dos 100 alunos do 4º ano da faculdade, 30 fizeram”, comemora o professor.
As vantagens
Muitas são as vantagens destas iniciativas, tanto para os presos quanto para os alunos. O processo de transferência de detentos para atendimento em hospitais envolve custos e alguns transtornos para ambas as partes. Para que um preso seja levado a um posto de saúde, por exemplo, são necessários, pelo menos, policiais para escolta e uma viatura, os quais poderiam estar atendendo outros casos. Há também o risco relacionado à segurança dos demais pacientes que se encontram nestes ambientes de saúde. Atualmente, uma das maiores dificuldades para tratamento de população encarcerada é a locomoção. Muitas vezes, eles faltam ao retorno não porque querem, mas porque não há escolta para levá-los.
“Se o médico estiver lá, se a equipe de saúde estiver lá, você consegue um atendimento local e só vai tirar da penitenciária os casos de maior complexidade”, argumenta a professora Carolina. Com orgulho, Pazin destaca o valor atribuído aos médicos pelos presos. “Somos tratados como anjos dentro do presídio. Eles têm vários códigos próprios e, quando tem rebelião, o pessoal da saúde é o primeiro a ser liberado, porque eles sabem que a gente está indo lá para ajudar e que nada do que eles fizerem ou nos contarem vai ser usado contra eles”.
Por outro lado, os alunos também são beneficiados pela iniciativa, uma vez que têm contato com uma realidade diferente da qual estão acostumados, tendo a oportunidade de aprender com problemas frequentes a essas pessoas, como tuberculose, sífilis, sangramentos ou tensão pré-menstrual, intervindo de maneira efetiva, sempre com base no contexto dos pacientes. “Muitas vezes, presas queixam de corrimento, mas não sabem fazer a higiene íntima. Também fazemos check up específico de cada idade dentro da penitenciária. O mesmo roteiro de exames que a gente faria em uma mulher dentro do HC, por exemplo, a gente faz na penitenciária”, afirma Carolina.
O futuro
Diante dos bons resultados alcançados, a intenção é ampliar o projeto, envolvendo um maior número de alunos e pacientes. Uma das propostas, ainda em discussão, é utilizar a telemedicina como forma de expandir o atendimento. “Se você tiver um médico lá dentro e puder contar com orientação médica externa, do hospital, seria possível atender por telemedicina”, afirma Pazin.
A iniciativa poderia evitar as transferências de presos que tanto atrapalham a rotina da penitenciária e do hospital e, em alguns casos, inviabilizam o atendimento por falta de efetivo.
Para Carolina, “o que fazemos é algo pioneiro. A USP prestando serviço à comunidade encarcerada e a população encarcerada servindo de campo de ensino e assistência para a Universidade de São Paulo. Se pudermos ampliar, seria ótimo”.