A Fiocruz deu início a uma de suas grandes conquistas no campo de cooperação internacional: o doutorado internacional em direitos humanos, saúde global e políticas da vida. O curso foi iniciado com uma aula sobre democracia, o Estado e as serialidades sociais e as políticas para além do neoliberalismo clássico, proferida pelo professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), José Maurício Domingues e promovida pela Vice-Presidência de Ensino, Informação e Comunicação (VPEIC/Fiocruz). Resultado de um esforço conjunto entre diversas unidades da Fundação, a iniciativa é fruto do convênio entre a Fundação e o Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra.
A proposta de elaboração do doutorado foi motivada pela visita do professor e diretor do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, Boaventura de Sousa Santos, à Fiocruz, em 2011. Desde então, foi dado início a um intenso trabalho institucional, que culminou com o início dessa primeira turma, que terá a participação de seis programas de pós-graduação da Fundação envolvendo seis de suas unidades: a Casa de Oswaldo Cruz (COC), a Escola Nacional de Saúde Pública (Ensp), a Fiocruz Minas, a Fiocruz Pernambuco, o Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde (Icict) e o Instituto Nacional de Saúde da Mulher, da Criança e do Adolescente Fernandes Figueira (IFF). A iniciativa tem como objetivo formar profissionais capazes de elaborar propostas em resposta aos principais desafios contemporâneos colocados no campo da saúde pública, os quais abrangem aspectos epistemológicos e políticos, como a relação entre os saberes biomédicos e outros relacionados à saúde, à doença, ao corpo, às práticas de cura ou às condições sociais, econômicas, culturais e ambientais. Busca ainda problematizar os temas da justiça social, cognitiva e ambiental e suas implicações para as condições de saúde e bem-estar das populações. Foram selecionados para participar do projeto três alunos brasileiros e cinco portugueses, que, ao final do curso, ganharão dupla titulação.
Na abertura da aula, a coordenadora do convênio CES-Fiocruz, Maria Helena Barros, destacou a importância do doutorado, o qual, segundo ela, representa três anos de construção de uma iniciativa que começou a ser germinada antes mesmo da criação do convênio. “Esse projeto mostrou que é possível barrarmos fronteiras e colocar a saúde como direito humano sob um ponto de vista transcontinental. O curso é somente uma das atividades que pretendemos ter dentro desse convênio, que deve ser ampliado para mais linhas de pesquisa”, afirmou. Também presente à mesa de abertura, o diretor da Ensp, Hermano Castro, disse que, para a elaboração da iniciativa, foi preciso vencer dificuldades que vão além da distância e passam pelo próprio esforço conjunto entre as diversas esferas da Fundação. Segundo ele, o doutorado, por ter como uma de suas principais temáticas os direitos humanos, se coloca como um grande desafio aos alunos que dele vão participar e se apresenta como uma importante proposta para as soluções de grandes problemas vivenciados no mundo. “Um curso que se chama direito à vida me lembra a fome no planeta, uma das misérias do mundo que atualmente nos chama mais a atenção. Milhares de pessoas morrem de fome, e não é por escassez de comida. Isso significa que precisamos melhorar em muito as políticas, e são as políticas intercontinentais que vão contribuir para mudarmos situações como essas”, enfatizou.
O professor e coordenador do Conselho Científico do CES da Universidade de Coimbra José Manuel Pureza comparou o discurso dos direitos humanos a um ato de coragem e bravura. “Há muitos e muitos anos o padre Antonio Vieira, ao dizer que índios e negros tinham alma assim como todas as outras pessoas, foi castigado com o exílio e pagou com sua própria vida, experimentando de forma cruel o que acontece quando se fala de direitos humanos de forma transparente e arrojada”, lembrou. Segundo Pureza, falar de direitos humanos e políticas da vida ainda não é fácil nos dias de hoje e a discussão dessas temáticas se dá em um momento onde predominam a redução da democracia, o desperdício de conhecimento e a mercantilização da vida. “Por meio desse curso, o CES e a Fiocruz se ‘irmanam’ nessa aventura provando que a ousadia de uma ciência cidadã não tem limites”, concluiu.
Para o diretor da COC, Paulo Elian, o curso é um projeto inovador e desafiador. “Áreas biomédicas servem para ajudar a superar as fronteiras continentais do saber. Espero que essa turma seja a primeira de muitas que ainda virão”, disse. A coordenadora de pós-graduação da Fiocruz, Cristina Guiillam, chamou a atenção para o longo período de construção do projeto e o destacou como um dos grandes ganhos da instituição. “É um tesouro termos esse curso que internacionaliza os programas dessa casa”, afirmou. Já a vice-presidente de Ensino, Informação e Comunicação da Fiocruz, Nísia Trindade Lima, enfatizou o trabalho em conjunto de diversas unidades da Fiocruz para a elaboração da iniciativa e abordou o que, para ela, foi a principal dificuldade que teve que ser superada para sua concretização: a conjugação de ações na instituição. “O curso foi desafiador para nós, pois geralmente não é fácil a integração de diversas ações. Ele expressa um movimento mais amplo da instituição de associar uma visão do campo da saúde coletiva e das ciências sociais a questões bastante candentes na sociedade contemporânea, no plano dos direitos humanos e da globalização”, avaliou.
Segundo o professor e diretor do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, Boaventura de Sousa Santos, o doutorado é um ganho fundamental nas relações entre a Fiocruz e a Universidade de Coimbra. “Direitos humanos, políticas da vida e saúde são temáticas fundamentais e extremamente atuais e que têm estado muito presentes em ambas as instituições”, afirmou. O presidente da Fiocruz, Paulo Gadelha, afirmou que o curso reúne duas instituições com características distintas, mas também comuns, como o forte compromisso com a questão social, a excelência em pesquisa e a promoção da reflexão acadêmica militante. “Esse doutorado vai nos dar um aprendizado mútuo imenso e será uma fonte riquíssima de reflexões e de formas de reforçar o papel institucional da Fiocruz em uma dimensão mais ampla”, concluiu.
Aula inaugural
Com base na obra A sociologia da modernidade: liberdade e disciplina, do teórico social alemão Peter Wagner, o professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) José Maurício Domingues abriu a aula inaugural abordando as três fases da Modernidade desde fins do século 18. A primeira, intitulada como liberal restrita, segundo ele, foi marcada por lutas sociais e teve o mercado como instituição fundamental e elemento organizador da vida social, tendo a família patriarcal e a cidadania civil cumprindo papel fundamental. “Ela foi uma modernidade liberal restrita por conta das lutas sociais desencadeadas a partir de seus próprios valores e da limitação das suas instituições para incorporá-los e politizá-los e, em parte também, por conta da própria dinâmica do mercado, que se mostrava caótico e incapaz de proporcionar um crescimento estável e incorporar todos na riqueza produzida pelo capitalismo”, explicou.
A descrença no mercado, combinado à luta dos trabalhadores e das mulheres durante o período, contou Domingues, acabou levando a uma crise dessa fase da modernidade em fins do século 19, abrindo espaço para uma nova etapa, chamada liberalismo. O Estado passa então a exercer papel central nessa nova etapa da modernidade, tornando-se o organizador da sociedade e coordenador da vida social por meio de medidas e hierarquias. Surge, então, o welfare state – de governo no qual o Estado tem papel chave na proteção e promoção da economia e no bem-estar social de seus cidadãos – e o fordismo, sistema de produção em massa que organiza a produção de forma hierárquica e verticalizada. “Essa modernidade liberal, no entanto, terá como outra face uma modernização colonial no resto do mundo, que não tem nada de liberal. Ou tem elementos liberais apenas quando esses interessam às potências metropolitanas, como no caso do mercado indiano voltado para os produtos têxteis ingleses”, ponderou. Essa segunda fase da modernidade, que se inicia por volta da década de 1920 e ganha força nos anos 1940, entra em crise na década de 1970. Eventos como a crise do fordismo, do estado do Bem-Estar Social e do sistema capitalismo mundial refletem esse declínio. Com isso, surge uma nova fase da modernidade. Esta, ao contrário das duas primeiras, que foram marcadas pela homogeneização da vida social, se caracteriza pelo aumento da complexidade da vida social em todas as suas esferas, tendo como resultado a pluralização social e a fragmentação das identidades e movimentos sociais, conforme narrou Domingues: “Hoje em dia, cada movimento social fala com a sua voz. E a tendência, como vimos nessas manifestações recentemente ocorridas no país, é a fragmentação ser tanta que é como se cada um tivesse sua própria perspectiva de coletividade”. Essa característica peculiar à atual fase da modernidade, segundo ele, impõe um grande desafio à sociedade em todo o mundo, demandando respostas diferentes dos diversos projetos políticos existentes atualmente. “Juntar todos esses elementos de maneira emancipatória não é simples. E se paramos nas identidades fechadas, setorializadas, fragmentadas e incapazes de se comunicar umas com as outras, os processos democráticos e a própria capacidade de universalização de uma sociedade vai se esgotando”, alertou.
Para solucionar essa questão, para ele, é necessário que, nesta pluralidade da modernidade contemporânea, sejamos capazes de articular elementos de universalidade com elementos dessa crescente particularização das identidades sociais. “Nesse sentido a América Latina tem muito a nos ensinar nos últimos anos. E a Constituição brasileira é exemplo disso”, afirmou Domingues. Nesse contexto, segundo ele, o conceito de neoliberalismo, muito falado atualmente e associado à ideia de mercantilização absoluta da vida social, dever ser repensado. “Quando falamos unicamente de neoliberalismo, deixamos de lado esse esquema de dominação global que aposta na pluralidade para dar sequência a seus projetos emancipatórios, fundamental para a arquitetura global do mundo atual”, defendeu. Para Domingues, o termo ‘neoliberalismo’ deveria ser substituído por ‘social liberalismo’, uma vez que ele está preocupado não somente com a mercantilização da vida social, mas também em reorganizar o tecido social, implementando políticas de governança pela fragmentação.
Sendo assim, defendeu ele, os grandes projetos homogêneos, sejam de emancipação ou de dominação, não podem mais operar de forma completa e devem dar lugar ao que Domingues chamou de uma “agenda de solidariedade complexa”, que combinaria a universalização de certa políticas sociais com politicas setorializadas e as demandas dos movimentos sociais particularizados. “A fragmentação dessa vida social permite uma governabilidade fragmentada e tira de cena, fundamentalmente, a universalização das politicas públicas e, em particular, das políticas sociais”, concluiu.
José Maurício Domingues tem graduação pela historia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), mestrado em sociologia pelo Iuperj/Ucam e doutorado em sociologia pela Global Economics and Political Science da Universidade de Londres. Foi professor e pesquisador no Iuperj/Ucam e trabalha com teoria sociológica e política, atuando, principalmente, em temáticas como teoria da subjetividade coletiva, modernidade global, sociedade contemporânea, modernidade brasileira, América Latina, Índia, China, movimentos sociais e cidadania. Tem diversos livros publicados em português, inglês e espanhol.