Nem Presa Nem Morta. A frase estampada nos lenços verdes, ao lado de um ramo de arruda, está nos blocos de Carnaval, na Conferência Nacional de Saúde, nos congressos de saúde coletiva, tremulando em frente ao Supremo Tribunal Federal (STF). Mulheres de diferentes idades, profissões e regiões do país se reuniram na campanha que leva este nome e defende a descriminalização do aborto no Brasil.
Elas não têm medo de dizer que o aborto é um tema para ser levado a sério — e deve ser encarado não só como questão de saúde pública, mas como um direito das mulheres e pessoas que gestam para decidir sobre seu próprio corpo. Portanto, essa também é uma discussão sobre liberdade e autonomia, o que se torna ainda mais difícil em uma conjuntura de avanço do conservadorismo e do fundamentalismo religioso. É o que ressalta uma das coordenadoras da campanha, Angela Freitas, ao lembrar que o aborto acontece, seja legalizado ou não. “Muitas mulheres irão buscar a interrupção [da gravidez], quer seja legal ou não, quer seja seguro ou não. Isso é um fato”, disse, em entrevista à Radis.
Um fato. Essa talvez seja a definição mais adequada para se referir à realidade do aborto entre as mulheres brasileiras. Um fato presente na vida de uma em cada sete brasileiras de até 40 anos, de acordo com a Pesquisa Nacional do Aborto (PNA) 2021, que revelou que essa é a proporção de mulheres no Brasil que já realizou o procedimento alguma vez na vida. Um fato que condena as mulheres a duas sentenças, expressas pelo próprio nome da campanha: ou à morte, com os riscos inerentes a um aborto inseguro; ou à prisão, por interromper uma gravidez indesejada.
Apesar da seriedade do assunto, as mulheres que integram o coletivo Nem Presa Nem Morta decidiram também utilizar estratégias lúdicas e criativas para dar visibilidade à pauta. Durante o Carnaval, elas se juntaram a diversos coletivos e ganharam as ruas para distribuir lenços verdes e adesivos, além de apoiar a campanha “Não é não”, contra o abuso e o feminicídio.
Em 2018, quando o movimento surgiu, por ocasião da audiência pública no STF sobre a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 442, elas fizeram uso de telões, para transmitir as audiências no festival Pela Vida das Mulheres, que ocorreu em paralelo, em frente ao Museu da República, em Brasília. Também se mobilizaram quando finalmente, em setembro de 2023, foi apresentado o voto da ministra Rosa Weber, então presidente do Supremo, favorável à descriminalização do aborto até a 12ª semana de gestação, conforme pede a ação.
A atuação do movimento pretende mostrar para a sociedade, pelo viés da comunicação e da educação, que o tema é urgente. Por que uma mulher que interrompe a gravidez pode ser condenada a uma pena maior do que a de estupro, por exemplo? É o que ocorre com a venda ou o fornecimento do misoprostol (medicação utilizada mundialmente para aborto domiciliar). No Brasil, a venda desse medicamento está enquadrada no artigo 237 do Código Penal como crime contra a saúde pública desde 1998, com pena de 10 a 15 anos de prisão — enquanto a punição por estupro é de 6 a 10 anos. Por que morrer em decorrência das complicações de um aborto inseguro, se em muitos casos só há essa alternativa diante de uma gestação que não deveria ter ocorrido?
“Ninguém defende uma política de aborto e ponto”, aponta Angela. Ela lembra que todo o aborto é um evento triste, doloroso para a mulher; mas também, segundo ela, pode trazer alívio, diante de situações incontornáveis. Por isso, a campanha Nem Presa Nem Morta e todo o movimento de mulheres que lutam por esse direito defendem a liberalização do aborto acompanhada de educação sexual, oferta de métodos contraceptivos, garantia de acesso a saúde para todas as pessoas, com atenção ao pré-natal e parto, e oferta de creche. “É preciso que a gente torne o aborto raro com políticas que impeçam uma gravidez indesejada”, completa.
No contexto em que grupos ultraconservadores agem para dificultar o acesso ao procedimento mesmo nos casos em que ele é reconhecido por lei, o movimento também já precisou sair em defesa do direito de meninas e mulheres a algo que já está previsto em lei, mas nem sempre é respeitado. No Brasil, o aborto é legal em três condições: o artigo 128 do Código Penal permite nos casos em que a gravidez traz riscos de vida à gestante ou foi resultado de um estupro; e, em 2012, o STF decidiu também que a gestação pode ser interrompida em situações em que o bebê é anencéfalo [má-formação do feto que inviabiliza a vida fora do útero]. Mesmo nestes casos, há forte pressão de grupos religiosos e políticos para que as mulheres não acessem o procedimento [Leia no Quadro 3].
Seja nas ruas, em conferências, em lançamentos de filmes sobre a temática ou em debates públicos, o movimento está presente fornecendo material e esclarecendo dúvidas. A socióloga e comunicadora social Angela Freitas conta que luta pelo direito ao aborto desde o final da década de 1970. Ao longo dos anos, foi se engajando e ajudando a criar uma rede de parcerias e colaboração em torno do tema e dos direitos das mulheres. Em 2018, seu caminho se juntou ao de Laura Molinari, jovem comunicadora que também atua na questão. Com o festival Pela Vida das Mulheres, nasceu a campanha. Nesta conversa com Radis, Angela aborda por que o tema do aborto ainda é um interdito no Brasil — e as razões pelas quais temos que falar sobre isso, sem medo e sem preconceitos.