Imagina um museu que reúne centenas de milhares de exemplares de órgãos e tecidos humanos que ajudam a contar a história de doenças no Brasil e retratam pesquisas realizadas por expoentes da ciência nacional. E que ainda utiliza seu acervo para ensinar e encantar pessoas de todas as idades. Esse é o Museu da Patologia do Instituto Oswaldo Cruz (IOC/Fiocruz), que, em 2023, completa 120 anos de uma trajetória marcada pela inovação e resiliência em prol da pesquisa e do ensino em ciência.
Com contribuições para a saúde nacional e internacional, o espaço foi idealizado pelo sanitarista Oswaldo Cruz, em 1903, a partir da conservação de amostras de órgãos analisados em necropsias para desvendar casos de febre amarela. Na época, Oswaldo tentava entender e debelar a doença que dizimava parte da população.
O acervo revela o espírito visionário de Oswaldo e o pioneirismo da Patologia em Manguinhos, bairro do Rio de Janeiro que abriga a sede da Fiocruz. “O Museu reúne representações de infecções estudadas no Instituto, com destaque para as doenças tropicais. Preservamos, por exemplo, o coração utilizado em investigações do cientista Emmanuel Dias sobre danos cardíacos relacionados à doença de Chagas. Temos também exemplares que mostram a manifestação de doenças antes e depois do desenvolvimento de vacinas”, conta a curadora, Barbara Dias.
Dentro do escopo do Museu da Patologia estão três conjuntos de acervo:
:: Coleção da Seção de Anatomia Patológica – considerado o acervo original do museu, possui mais de 850 peças anatômicas e 10 mil lâminas;
:: Coleção de Febre Amarela – documenta as epidemias do agravo no país entre 1930 e 1970. É composto por amostras de cerca de 498 mil casos médicos, com órgãos conservados em formol, cortes histológicos em lâminas de vidro e blocos de parafina.
:: Coleção do Departamento de Patologia – iniciada em 1984, guarda a história de quase 40 anos de pesquisas através de mais de 21 mil casos estudados. O acervo compreende peças em formol, centenas de milhares de blocos parafinados e lâminas com cortes histológicos, além de imagens analógicas e digitais.
“Embora sejam três coleções diferentes, possuem forte conexão entre si. Os acervos são diversificados, com material de vários países, mas, principalmente, com grande representatividade nacional. Essa diversidade pode se revelar ainda maior, considerando que estamos realizando o inventário dessas coleções”, destaca Barbara.
Coleções que contam um pouco do Brasil
A Coleção da Seção de Anatomia Patológica está intrinsicamente ligada à história da histologia patológica no Brasil, que começou a se desenvolver no início do século XX em dois núcleos, um deles no Instituto Soroterápico de Manguinhos — que mais tarde se chamaria Instituto Oswaldo Cruz.
“Quando Rocha Lima trouxe material de febre amarela da Alemanha, Oswaldo Cruz teve a percepção de que seria fundamental também realizar estudos com material nacional, já que o Brasil estava passando por um surto da doença. Assim, foi decretada a criação do museu e solicitado que os pesquisadores da época depositassem no espaço as peças de interesse médico”, relata a curadora.
A importância da Coleção foi reconhecida logo nos primeiros anos de criação. O acervo integrou exposição realizada por Oswaldo no Congresso Internacional de Higiene e Demografia em Berlim, na Alemanha, em 1907. Premiada com medalha de ouro, a exposição atraia atenção especial pelas peças que registravam lesões provocadas pela febre amarela e pela peste bubônica.
Já a Coleção de Febre Amarela, iniciada em 1928 por meio de um convênio entre o governo brasileiro e a Fundação Rockefeller, reflete as atividades desenvolvidas no país de combate ao ciclo urbano da doença no século 20. A partir da técnica de viscerotomia, que retira fragmentos de órgãos internos para exames e diagnósticos, exemplares eram guardados e convertidos em blocos de parafina que, por sua vez, originavam lâminas para diagnóstico. Esse material biológico é acompanhado por uma vasta documentação, composta principalmente por protocolos de pesquisas, registros de casos da doença, laudos da histopatologia, fotos de indivíduos e locais de coleta.
Com o término do acordo com a Rockfeller, em 1939, a campanha é mantida pelo governo federal através do Serviço Nacional de Febre Amarela, e a guarda da Coleção passa a ser inteiramente do IOC no final da década 1940. A Coleção foi oficialmente integrada ao Museu da Patologia em 2007. “Foi natural a integração dessa Coleção ao Museu, dado o forte vínculo entre a Divisão de Patologia do IOC e os médicos envolvidos no convênio. Além disso, a febre amarela era uma das principais preocupações de Oswaldo Cruz quando fundou o Museu”, afirma Barbara.
Período sombrio
Entre o final da década de 1960 e a década de 1970, durante a Ditadura Militar, o IOC atravessou um período sombrio, com a interrupção de pesquisas, o fechamento de laboratórios, perseguição a cientistas e a destruição de coleções biológicas, como a do Museu da Patologia.
“As Coleções da Seção de Anatomia Patológica e a de Febre Amarela sofreram muito com o episódio conhecido como Massacre de Manguinhos. Exemplares e documentações foram perdidos ou sofreram com a deterioração”, relembra Barbara.
As lâminas que restaram precisaram passar por um minucioso processo de restauração. Um dos membros da equipe era José de Carvalho Filho. Falecido em 2015, ele dedicou mais de 60 anos de trabalho no IOC. Por muito tempo foi o fotógrafo oficial do Instituto, sendo o responsável, inclusive, pelo registro fotográfico histórico da reintegração dos pesquisadores cassados pela Ditadura.
Quando o Instituto foi reorganizado, na década de 1980, foi criado o Departamento de Patologia do IOC — que décadas mais tarde deu origem ao atual Laboratório de Medicina Experimental e Saúde, responsável pela guarda do Museu da Patologia.
Foi então que em 1984 surgiu a caçula Coleção do Departamento de Patologia, acervo que ainda hoje recebe material de pesquisas. “Diferentemente das outras Coleções, que se concentram na patologia humana, essa trata da patologia experimental, estudando a indução artificial dos processos patológicos. O acervo continua em uma crescente como resultado do grande volume de material necessário para a realização de trabalhos científicos, monografias, dissertações e teses nas áreas de Patologia e Hematologia experimentais”, destaca Barbara.
Popularização da ciência como principal vertente
Quem já teve a oportunidade de visitar eventos científicos que contaram com a participação do Museu da Patologia, provavelmente se encantou com a variedade de jogos e abordagens interativas promovidas pelo espaço.
“No início dos anos 2000, quando expressamos nosso interesse em participar desses eventos, havia um receio se teríamos sucesso por conta da estética das peças. Porém, percebemos que as crianças não se incomodavam em ver os órgãos conservados em formol. Pelo contrário, ficavam ainda mais curiosas”, relata Barbara.
Outra atividade marcante, foi a exposição Corpo, Saúde e Ciência. A mostra contou com atividades lúdicas, microscopia virtual, telepatologia, observação de células ao microscópio, jogos, desenhos anatômicos, fotos, documentos e instrumentos médicos raros.
Realizada em 2013, a exposição atualmente pode ser visitada de modo virtual, no site do Museu, que disponibiliza também outras atividades, como ebooks, videoaulas, cursos, materiais didáticos e muito mais. Tudo com acesso gratuito. “Buscamos constantemente inovações para manter o Museu em evidência. A cada ano, desenvolvemos atividades que contribuam com a popularização do conhecimento científico”, ressalta a curadora.
Resiliência como característica fundamental
Mais recentemente, outro duro episódio entrou para a história do Museu. No dia 30 de abril, um incêndio destruiu parte do acervo e do espaço que passava por obras para receber visitantes. “Estávamos na euforia de abrir o museu para o público quando o espaço foi atingido pelo incêndio. Tínhamos um planejamento estratégico de visibilidade que precisou ser adiado para que pudéssemos focar na recuperação do material afetado. Desde maio, estamos nesta força tarefa que se estenderá por 2024”, relata Barbara.
Para a curadora, além da recuperação das peças atingidas pelo incêndio, o principal foco é conseguir um novo espaço que possa servir como sede para o museu. “A imagem que temos é que estávamos em um barco, navegando em direção a um destino. No entanto, o vento mudou e tivemos que ajustar as velas para ainda alcançar esse destino. Queremos abrir o museu para o público, fazer divulgação científica, encantar a sociedade e preservar o acervo da melhor maneira possível”, concluiu.