Enquanto alguns pacientes morrem com alta carga viral e pouca inflamação, outros são vitimados por complicações inflamatórias que surgem após a eliminação do vírus do organismo. Os casos deste segundo grupo, segundo cientistas da USP, têm relação com a permanente ativação de um mecanismo inflamatório chamado inflamassoma. Achados podem orientar abordagens terapêuticas personalizadas
Estudo conduzido na Universidade de São Paulo (USP) ajuda a entender, em nível molecular, por que parte dos infectados pelo SARS-CoV-2 desenvolve uma inflamação sistêmica potencialmente fatal mesmo após eliminar o vírus do organismo. Esses pacientes geralmente passam dias internados em terapia intensiva, com necessidade de ventilação mecânica, e apresentam complicações como fibrose pulmonar e trombose.
Segundo a pesquisa, divulgada na plataforma medRxiv em artigo ainda sem a revisão por pares, o quadro tem relação com um mecanismo inflamatório conhecido como inflamassoma que, além de estar exacerbado nesses pacientes graves, não é desativado nunca. Dessa forma, a resposta imunológica que provoca a inflamação não cessa. A descoberta pode ajudar no desenvolvimento de tratamentos mais específicos para esses casos.
“Neste estudo pudemos confirmar que o inflamassoma, responsável pela resposta imunológica excessiva [tempestade de citocinas] e que resulta em alta mortalidade, não é desativado. Isso explica alguns casos fatais de COVID-19”, afirma Dario Zamboni , professor da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (FMRP-USP) e coordenador de dois projetos sobre o tema (19/11342-6 e 20/04964-8).
A investigação foi realizada no Centro de Pesquisa em Doenças Inflamatórias (CRID) – um Centro de Pesquisa, Inovação e Difusão (CEPID) da FAPESP.
Como explica Zamboni, o inflamassoma é um complexo proteico existente no interior das células de defesa. Quando essa maquinaria celular é acionada, moléculas pró-inflamatórias conhecidas como citocinas passam a ser produzidas para avisar o sistema imune sobre a necessidade de enviar mais células de defesa ao local da infecção.
O novo estudo do grupo mostra que, enquanto uma parcela dos pacientes hospitalizados por COVID-19 apresenta alta carga viral e baixa ativação do inflamassoma – e ainda não se sabe exatamente por que eles morrem –, outra parte permanece com o inflamassoma ativado, segue com uma inflamação altíssima e acaba morrendo por causa disso.
Cepa ancestral
A pesquisa foi feita com material coletado por meio da autópsia pulmonar de 47 indivíduos que morreram de COVID-19 em 2020 – quando ainda não havia vacina disponível nem diversas variantes de preocupação do SARS-CoV-2. O grupo da USP comparou a resposta ao vírus ancestral – que causou os primeiros casos de COVID-19 na cidade chinesa de Wuhan – com a resposta ao vírus influenza, causador da gripe. Em pacientes com COVID-19, a ativação do inflamassoma ocorre principalmente nos macrófagos (linha de frente do sistema imune) e nas células endoteliais (que revestem os vasos sanguíneos), enquanto na gripe os pneumócitos tipo I e tipo II (presentes nos alvéolos pulmonares) contribuem de forma mais significativa.
“O inflamassoma estava muito mais ativado em pacientes que faleceram por COVID-19 do que nos pacientes que faleceram pela infecção com o influenza. Isso contribui para entendermos por que a mortalidade foi muito maior pelo SARS-CoV-2”, diz a doutoranda Keyla de Sá , primeira autora do estudo.
Em seguida, o grupo analisou a expressão gênica nas células pulmonares coletadas por autópsia. “Havia claramente dois grupos de pacientes: um composto pelos que faleceram com alta carga viral e pouca inflamação e outro formado pelos que morreram mais tardiamente, com pouca carga viral e muita inflamação. Embora os pacientes do segundo grupo não tivessem mais o vírus no organismo, o inflamassoma não foi desativado, o que parece ter contribuído para o óbito”, afirma Sá.
Zamboni explica que o objetivo da pesquisa foi compreender por que o mesmo vírus pode provocar desfechos tão diferentes. “Por isso trabalhamos com pacientes que faleceram antes do desenvolvimento das vacinas e do surgimento de novas cepas virais. É importante saber como o vírus ancestral se comporta, até mesmo porque as variantes são derivadas dele, e ele continua circulando em morcegos”, diz.
Além da COVID-19 e da gripe, o inflamassoma também está envolvido em doenças autoimunes, neurodegenerativas, alguns tipos de câncer e outras doenças infecciosas, incluindo zika e chikungunya e febre do Mayaro.
No caso da COVID-19, um estudo realizado pelos pesquisadores do CRID, também liderado por Zamboni, identificou, em 2020, que é o inflamassoma que desencadeia a tempestade de citocinas típica da COVID-19 (leia mais em: agencia.fapesp.br/34680/).
“Esse novo estudo mostra a existência de dois grupos de pacientes com casos graves de COVID-19, um deles não consegue promover a desativação do inflamassoma e do processo inflamatório, mesmo depois de ter cessado a replicação viral. Entender esse processo é fundamental não só para a COVID-19, mas para diversas doenças inflamatórias”, destaca Zamboni.
Embora ainda não se saiba o motivo de o inflamassoma não ser desativado nesses casos, a descoberta desse mecanismo pode auxiliar em protocolos de tratamento. “É importante saber se o paciente é do tipo que está com as taxas de inflamassoma muito elevadas, pois ele pode ir a óbito por complicações ocasionadas pelo processo inflamatório, ou se é do tipo com muita replicação viral e uma inflamação menor. Ou seja, para futuros tratamentos é preciso saber o que atacar: a inflamação ou o vírus”, diz.
O artigo Inflammasome activation and pulmonary viral loads define two distinct clinical outcomes in COVID-19 pode ser lido em: www.medrxiv.org/content/10.1101/2022.06.24.22276878v1.full.