Próximo de completar seus quatro anos, Julinho começou a frequentar uma creche perto de casa. A adaptação foi difícil para os adultos da família, que estavam acostumados a cuidar dele o tempo inteiro. “E se ele tivesse uma crise convulsiva?”, “Se chorasse muito?”, “E se esquecessem os horários dos remédios?”. Os questionamentos eram frequentes. Mas o menino surpreendeu todo mundo com sua boa integração: não pareceu sentir falta da mãe e da avó, era amável com os colegas e encorajado o tempo todo a provar coisas novas. Até o frango com macaxeira que antes não gostava se tornou sua comida favorita. A convivência com outras crianças o ajudou a desenvolver de maneira surpreendente o andar, o brincar e a forma de comer.
Julinho é uma criança de quatro anos nascida com a Síndrome Congênita do Vírus Zika (SCZ), epidemia que atingiu seu pico no Brasil em 2015. Sua história é contada pela socióloga Ana Claudia Camargo, no livro Micro-histórias para pensar macropolíticas. No relato, Dona Lúcia, avó do garoto, se emocionava constantemente de ter que deixá-lo “sozinho” nesses momentos, porque segundo ela “essas crianças são muito frágeis (…) qualquer ventinho leva a vida dele embora…”
O medo de dona Lúcia é real. Um estudo inédito publicado recentemente na The New England Journal of Medicine, o periódico com maior impacto na comunidade científica em geral, constatou que crianças com Síndrome Congênita da Zika tem até 11 vezes mais chances de morrer em comparação com crianças sem a Síndrome até o terceiro ano de vida. A investigação faz parte da pesquisa Plataforma de Vigilância de Longo Prazo para Zika e suas Consequências, coordenada pelo Centro de Integração de Dados e Conhecimentos para Saúde (Cidacs/Fiocruz Bahia).
De acordo com a pesquisadora associada do Cidacs e professora assistente da London School of Hygiene & Tropical Medicine (LSHTM), Enny Paixão, autora do estudo, o objetivo central da pesquisa foi comparar a mortalidade entre crianças com e sem a Síndrome, levando em conta fatores como o peso e a idade gestacional no nascimento. Além disso, a ideia também foi investigar as principais causas de óbitos de crianças com a Síndrome Congênita da Zika, sempre comparando com as crianças que não a possuem.
A SCZ pode se apresentar de várias formas. Crianças podem ter anomalias estruturais, como a microcefalia, anomalias funcionais, como a dificuldade para engolir, ou ter sequelas clínicas como a epilepsia. Essas consequências são decorrentes do efeito do vírus zika no sistema nervoso central dos bebês quando as mães são infectadas durante a gravidez.
Mortalidade aumentada até os 3 anos de vida
Para chegar aos resultados, foram analisados dados de mais de 11 milhões de nascidos vivos cadastrados no Sistema de Informações sobre Nascidos Vivos (Sinasc), no período entre os anos 2015 e 2018, cruzados com dados do Registro de Eventos em Saúde Pública (Resp). Nesse processo, foram excluídos gêmeos e crianças que ainda não estavam confirmadas ou foram descartadas como portadoras de SCZ. A amostra final de crianças com a Síndrome Congênita da Zika foi de 3.308 e, neste universo, 398 óbitos foram registrados.
O trabalho fez um acompanhamento desses nascidos durante 36 meses. É o primeiro estudo que investiga a mortalidade de crianças diagnosticadas com a Síndrome com acompanhamento até o terceiro ano de vida.
Os resultados da pesquisa mostram que, tanto no período neonatal quanto após o primeiro ano de vida, crianças portadoras de Síndrome Congênita da Zika têm mais chances de morrer. Até os 28 dias de vida essas chances são sete vezes maiores do que para as crianças sem Síndrome. Esse número aumenta ainda mais entre 1 e 3 anos de vida: a possibilidade de uma criança com SCZ vir a óbito é 22 vezes maior.
Peso e idade gestacional no nascimento influenciam a taxa de mortalidade
Embora o estudo tenha identificado que não há diferença na taxa de mortalidade de crianças que nascem com menos de 32 semanas, sejam elas portadoras da Síndrome ou não, isso muda a partir desse período. Os bebês que têm SCZ e nascem entre 32 e 36 semanas de gestação são nove vezes mais propensos a morrer. As chances aumentam para 14 vezes quando o nascimento acontece após 37 semanas.
O padrão é o mesmo em relação ao peso ao nascer. Embora não exista diferença para os nascidos com menos de 1,5kg, sejam ou não portadores da Síndrome Congênita da Zika, o quadro muda se elas nascem com o peso considerado adequado: a possibilidade de óbito das crianças com a Síndrome é 13 vezes maior.
Para Enny Paixão, diante de números tão alarmantes, é preciso implementar condutas após o nascimento que ajudem a melhorar a sobrevivência dessas crianças: “Precisamos de protocolos pós-natais bem estabelecidos, incluindo intervenção precoce, para ajudar a diminuir sequelas e melhorar a sobrevida delas”, explica.
A professora da Universidade Federal da Bahia (Ufba) e pesquisadora associada ao Cidacs/Fiocruz Bahia, Glória Teixeira, também autora do estudo, destaca que essas crianças e suas famílias precisam ser amparadas por políticas do ponto de vista da atenção à saúde e das questões socioeconômicas: “O aumento de leitos de UTI neonatal é uma política fundamental para evitar mortes por síndromes congênitas neurológicas. Nós observamos que as crianças morriam com maior frequência em localidades com poucos leitos de UTI neonatal. Essas crianças precisam de centros de reabilitação: elas nascem com menos neurônios e com neurônios danificados, mas têm neurônios passíveis de serem estimulados, o que pode melhorar o processo de cognição e motor”, explica.
Principais causas dos óbitos registrados
Além de investigar as principais causas das mortes registradas entre as crianças com SCZ no período estudado, o trabalho também comparou essas causas nas mortes de crianças sem a Síndrome.
A análise mostrou que entre as crianças que tinham SCZ, a mortalidade por anomalias congênitas é muito maior. Doenças infecciosas e parasitárias também estão entre as principais causas de morte neste grupo em comparação com crianças sem Síndrome. Depois de 1 ano de vida, óbitos por causas relacionadas ao sistema nervoso central passam a aumentar muito em comparação às crianças sem SCZ.
Enny Paixão acredita que o estudo chama atenção para a necessidade da prevenção da infecção pelo vírus zika: “A prevenção primária é fundamental para evitar a infecção congênita”. Glória Teixeira chama atenção para a união das esferas municipal, estadual e federal para distribuir melhor o atendimento a essas crianças e mães: “É fundamental disponibilizar serviços e profissionais capacitados para o atendimento no nível local. Os gestores e técnicos da Vigilância em Saúde dos três níveis de gestão devem trocar informações e pensar em estratégias para capilarizar as ações”, afirma.
O coordenador do Cidacs/Fiocruz Bahia, Mauricio Barreto, coautor do estudo, acredita que o estudo tem potencial para ser utilizado imediatamente pelos gestores dos sistemas de saúde. “Estamos muito orgulhosos deste estudo como um complemento ao esforço para demonstrar o poder dos dados de saúde de rotina brasileiros, muito criteriosamente processados no Cidacs, para produzir conhecimento científico sólido em torno de questões críticas de saúde, com alto nível de generalização e aplicabilidade, e para uso imediato pelos tomadores de decisão”, afirma.
São essas políticas públicas sustentadas em evidências científicas sólidas que vão ajudar a outras mães como a de Julinho e verem seus filhos sobreviverem à síndrome para encarar os outros desafios da infância.