Cientistas testaram ação de anticorpos monoclonais contra diferentes linhagens do vírus da febre amarela (Foto: Josué Damacena – IOC/Fiocruz)
Pesquisadores da Faculdade de Medicina Albert Einstein, nos Estados Unidos, em parceria com o Instituto Oswaldo Cruz (IOC/Fiocruz) e a Universidade de São Paulo (USP), além de outras instituições, deram um importante passo em busca de uma terapia contra a febre amarela. Considerados tendência mundial, os anticorpos monoclonais sintéticos têm sido alvo de estudos mundo afora. Produzidos em laboratório, esses anticorpos se ligam a uma região específica da partícula do vírus, interrompendo o processo de infecção.
Medicamentos desse tipo foram desenvolvidos, por exemplo, para tratamento da Covid-19 e da zika. Na febre amarela, os fármacos podem ser uma alternativa para o tratamento de infecções e para a profilaxia, considerando pessoas que viajam para áreas de risco, mas não podem se vacinar por causa de contraindicações. Os primeiros resultados do estudo, recém-publicado na revista científica Cell Host & Microbe, apresentam o mapeamento de variações de aminoácidos que alteram a superfície da partícula viral, dificultando a ação de algumas classes de anticorpos.
“Os anticorpos monoclonais são baseados em anticorpos naturais, produzidos pelo organismo. Nosso estudo mostra que é obrigatório selecionar as moléculas contra a febre amarela considerando os vírus que circulam em cada região, porque alguns anticorpos que neutralizam o vírus vacinal e outras cepas de origem africana não foram capazes de neutralizar os vírus da América do Sul”, adianta a pesquisadora, Myrna Bonaldo, chefe do Laboratório de Biologia Molecular de Flavivírus do IOC e uma das autoras do artigo.
Variação mapeada
Na primeira etapa do estudo, os pesquisadores avaliaram a capacidade do soro de pessoas vacinadas – que contém dezenas de tipos de anticorpos induzidos pela imunização – para neutralizar diferentes linhagens virais. Foram consideradas as linhagens utilizadas nas formulações da vacina da febre amarela no Brasil e nos Estados Unidos, sendo ambas versões atenuadas de um vírus isolado na África, em 1927, e uma linhagem isolada no Brasil, em 2017. A neutralização do vírus brasileiro foi significativamente menor do que a dos vírus vacinais. Em seguida, os cientistas investigaram a capacidade de atuação de cerca de cem anticorpos monoclonais, produzidos com base nos anticorpos naturais presentes no soro de pessoas vacinadas.
“Detectamos que a capacidade de neutralização de algumas moléculas que eram muito reativas para o vírus vacinal caiu para zero contra o vírus brasileiro. Os experimentos apontaram que os anticorpos que falhavam tinham um alvo comum: o domínio II da proteína E”, diz a doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Biologia Celular e Molecular do IOC e também autora do estudo, Nathalia Dias Furtado.
A proteína E forma o envelope que reveste a partícula viral e apresenta três segmentos expostos na superfície do vírus, chamados de domínios I, II e III. A molécula tem um papel importante na infecção. Ela atua como uma chave, que se liga à célula hospedeira, promovendo a abertura da membrana celular para a penetração do vírus. Por isso, para bloquear a infecção, os anticorpos miram nos diferentes segmentos da proteína E.
Comparando o vírus brasileiro com a linhagem vacinal e outros dois vírus de origem africana, os pesquisadores identificaram variações em dois pontos no domínio II da proteína E. Segundo os cientistas, essas alterações explicam por que uma parte dos anticorpos perde a capacidade de neutralizar o vírus. “Anticorpos que têm como alvo outros domínios da proteína E permanecem capazes de atuar. Mas, sem o efeito dos anticorpos que miram no domínio II, a potência de neutralização total do soro de pessoas vacinadas cai”, comenta Nathalia.
A etapa final do trabalho consistiu na análise de 281 sequências genéticas do vírus da febre amarela disponíveis em bancos de dados. Olhando para região do genoma referente à proteína E, os pesquisadores observaram que as mutações nos dois pontos do domínio II estavam presentes em quase todos os vírus do genótipo I Sul Americano, que é predominante no Brasil. Já os vírus do genótipo II da América do Sul, encontrados com maior frequência na Bolívia, Peru, Equador, apresentaram apenas um dos pontos de variação. Enquanto isso, nenhum vírus de origem africana exibiu este tipo de variação na proteína do envelope.
Adaptação ao Novo Mundo
Para as autoras da pesquisa, os dados indicam que as mutações fazem parte do processo de adaptação do vírus da febre amarela ao Novo Mundo. “O vírus da febre amarela se originou na África e foi trazido para as Américas com o tráfico de escravos. Aqui, ele encontrou espécies de mosquitos e primatas não humanos diferentes das que existiam no continente africano e isso forçou uma adaptação, que provavelmente ocorreu séculos atrás”, aponta Nathalia.
Chamando atenção para o ciclo silvestre da febre amarela, as pesquisadoras destacam ainda que a evolução genética do patógeno é motivada principalmente por fatores ecológicos e não busca “escapar da vacina”. “O vírus da febre amarela precisa se replicar em dois hospedeiros muito diferentes, um inseto e um mamífero. A proteína E tem que ser uma chave-mestra. Isso gera uma pressão seletiva para que o vírus se mantenha estável, porque se ele se adapta muito a um tipo de hospedeiro, corre risco de perder a adaptação ao outro. Se isso acontece, ele é eliminado da natureza”, explica Myrna.
A pesquisadora enfatiza ainda a diferença em relação ao Sars-CoV-2, causador da Covid-19, que começou a se disseminar há pouco tempo na população humana, com transmissão direta de uma pessoa para a outra e taxa de mutação alta. “Escapar da vacina pode ser uma vantagem evolutiva importante para o Sars-CoV-2, mas não é um fator central para o vírus da febre amarela, que tem um ciclo silvestre e já está bem estabelecido na natureza há séculos”, salienta.
Eficácia da vacina
Segundo as pesquisadoras, apesar da menor capacidade de neutralização dos anticorpos, a eficácia da vacina contra a febre amarela pode se manter elevada devido a outros mecanismos imunológicos. “Em termos práticos, mesmo com as diferenças observadas, temos uma vacina eficaz, que tem sido poderosa para controlar surtos tanto na África como na América do Sul”, afirma Myrna, lembrando que as epidemias mais recentes de febre amarela no Brasil se espalharam em contextos de baixa cobertura vacinal e foram controladas com o avanço da imunização.
“Os anticorpos são apenas uma parte da resposta imune. A vacinação estimula, por exemplo, as células T CD8 citotóxicas, que são muito importantes para reconhecer e eliminar células infectadas”, acrescenta Nathalia. As autoras do trabalho apontam ainda que existem diversas pesquisas em andamento para desenvolver novas vacinas da febre amarela, utilizando tecnologias diferentes da vacina atual, que tem como base um vírus vivo atenuado. Entre as opções em estudo estão uso de vírus inativado, vetor viral, RNA mensageiro e antígeno.
Neste contexto, os dados obtidos na pesquisa podem orientar a busca de formulações capazes de estimular a produção de anticorpos contra diferentes linhagens virais. “Com tecnologias mais avançadas, é possível pensar em uma vacina múltipla. Porém, para isso, os estudos terão que provar que as novas formulações são mais eficazes do que a vacina atualmente utilizada”, pondera Myrna.