O pico de novos casos de covid-19 por enquanto não tem, segundo indícios iniciais, levado a um aumento na mortalidade. Mas a doença avança diante de equipes de saúde esgotadas, fragilizadas e desesperançosas com os rumos da pandemia, segundo dizem pesquisadores, psiquiatras e especialistas que acompanham esses profissionais da saúde desde os primórdios da batalha contra o coronavírus, em março de 2020. É também o que dizem os próprios profissionais.
“O que temos escutado é que existe uma grande sensação de exaustão – de profissionais de saúde dizendo ‘não é possível. Vou ter que tirar férias, não vou aguentar’, ao verem as emergências cheias novamente”, diz à BBC News Brasil o psiquiatra Helian Nunes, um dos idealizadores do projeto Telepan Saúde, que desde o início da pandemia oferece sessões de aconselhamento psicológico gratuito online a mais de 640 profissionais de saúde de todo o país.
Há cerca de 200 pacientes ainda sendo acompanhados pelo Telepan (uma parceria da Universidade Federal de Minas Gerais com a Associação Brasileira de Neuropsiquiatria), alguns deles com sintomas de estresse pós-traumático, explica Nunes.
“Ficamos surpresos, porque achávamos que, quando a situação melhorasse, iríamos zerar os atendimentos. Mas não foi o que aconteceu. Muitas pessoas seguem em atendimento até hoje, não pudemos dar alta. E quem vai ocupar o lugar delas nos hospitais?”
A percepção de Nunes corrobora o que pesquisadores da Escola de Administração de Empresas da FGV-SP escutaram de profissionais de saúde pública do país, em rodadas de entrevistas que têm sido conduzidas desde abril de 2020. A mais recente foi publicada em outubro de 2021.
“Nossa expectativa era de que os resultados seriam sempre melhores: que os profissionais iriam aprender (a lidar com a doença), que sentiriam menos medo, que as questões de saúde mental iriam se acomodar. E não é isso o que os dados mostram”, explica à BBC News Brasil a pesquisadora Gabriela Lotta, professora de Administração Pública e Governo da FGV.
O medo dos profissionais de saúde entrevistados pela pesquisa – de técnicos de enfermagem a médicos – frente à covid-19 se manteve em patamares acima de 80% ao longo de todas as rodadas da pesquisa.
Também mais de 80% deles sentiram que sua saúde mental foi afetada negativamente pela pandemia, mas menos de um terço (30%) afirmou ter recebido algum tipo de apoio para lidar com isso.
‘Esperança de normalidade que se perdeu’
“Eles estão lá em condições muito ruins de saúde física e mental, e com a sensação de falta de apoio de políticas públicas e uma esperança de normalidade que se perdeu”, avalia Lotta. “Uma frase que apareceu em muitas respostas é: ‘somos soldados largados na frente da batalha’. A sensação de solidão é muito forte.”
E, embora tenha havido um aprendizado técnico importante sobre como prevenir, enfrentar e tratar o coronavírus, a sucessão de mutações do vírus e de novas ondas de covid-19 faz com que a sensação de despreparo frente a doença continue elevada, explica Lotta.
A enfermeira Alessandra Alencar Gadelha de Melo sente isso em seu dia a dia em dois hospitais (um público e um privado) em Salvador (BA), apesar de já acumular quase três décadas de experiência na profissão.
“É claro que a gente sabe lidar melhor com o paciente de covid-19 ou de síndrome respiratória aguda grave. E a vacinação (em altos níveis no país) também dá um conforto. Mas sempre vem uma apreensão e ansiedade diante das novas variantes do coronavírus”, diz ela.
Melo também é presidente do Sindicato dos Enfermeiros do Estado da Bahia e recebe relatos diários de colegas queixando-se da rotina em prontos-socorros lotados com pacientes com sintomas de covid-19 e influenza. Ela notou, ao longo da pandemia, a deterioração da saúde física e mental dos enfermeiros de seu Estado.
Até 2020, as principais queixas recebidas no sindicato eram relacionadas a atrasos salariais, explica a enfermeira. “Agora, a maioria das reclamações é por questões de saúde mental, esgotamento mental e assédio moral, (por conta de) relações de trabalho muito desgastadas e precarizadas.”
“Nós nos contaminamos muito e adoecemos muito – houve um escancaramento das fragilidades e da precariedade da profissão. Os enfermeiros precisam ter vários vínculos trabalhistas (empregos), e quase todos esses vínculos são precários.”
Os mais vulneráveis
Enfermeiros, técnicos em enfermagem e agentes de saúde estão entre os profissionais mais vulneráveis nas circunstâncias atuais, avalia Gabriela Lotta.
Até porque esses grupos são compostos em sua maioria por mulheres, e muitos são negros, o que significa que já sofrem o peso de outras desigualdades socioeconômicas, e têm salários relativamente baixos.
“São pessoas em condições piores para enfrentar a pandemia. Fazem dupla ou tripla jornada, muitas vezes não têm com quem deixar os filhos, ou têm de cuidar dos próprios pais. A sobrecarga mental é ainda pior”, prossegue Lotta.
O psiquiatra Helian Nunes observou, também, muita fragilidade entre um grupo ainda mais amplo de profissionais.
“Já no início a gente viu que a vulnerabilidade é de todo o trabalhador (envolvido no atendimento a pacientes): desde o porteiro do hospital até o motorista da ambulância”, pondera.
Enfermarias, prontos-socorros e postos de saúde também sofrem com uma carga de trabalho e uma carga horária crescentes, dizem os pesquisadores.
“Chamou nossa atenção o fato de os profissionais de saúde primária, como os que atendem em postos de saúde, mostrarem um nível de sofrimento bastante alto, maior até de quem trabalha em hospitais”, explica à BBC News Brasil Débora Dupas Nascimento, doutora em Ciências e pesquisadora em Saúde Pública da Fiocruz Mato Grosso do Sul.
Dupas é coordenadora de uma pesquisa que entrevistou 518 profissionais de saúde sul-mato-grossenses entre outubro de 2020 e março de 2021, cujos resultados foram publicados em novembro. E mais da metade dos entrevistados apresentaram sintomas – de leves a severos – de ansiedade, estresse e depressão.
“A literatura já mostra que, em contextos normais, profissionais da saúde já são mais suscetíveis a esses transtornos. Agora, na pandemia, isso se agravou, reduzindo o número de profissionais disponíveis por conta do número de afastamentos”, explica a pesquisadora.
É que o contexto atual cria uma espécie de ciclo vicioso: quanto mais exaustão e contágio, mais profissionais precisam ser temporariamente afastados de seus trabalhos, aumentando a pressão – e o risco de adoecimento – dos profissionais que ficam.
É comum nesses cenários, diz Dupas, que trabalhadores sejam pressionados a encurtar suas licenças médicas ou a trabalhar doentes para suprir a demanda e cumprir plantões.
“A gente tem ficado muito preocupado com esse desgaste, porque as equipes estão sobrecarregadas novamente”, agrega Helian Nunes. “Não estamos favorecendo a saúde dos nossos trabalhadores, e não tem profissional sobrando no mercado.”
Dois médicos intensivistas consultados pela BBC News Brasil dizem que (felizmente), até o momento, o pico de casos de covid-19 não resultou em aumentos drásticos de casos graves que exijam internações em Unidades de Terapia Intensiva (UTIs). Mas ambos dizem que suas equipes estão cansadas.
“Está todo mundo exausto. Reviver outra onda é mobilizar recursos e energias, e uma UTI de covid-19 exige o dobro ou o triplo (de esforço) do que uma UTI normal”, diz o médico Matheus Alves, intensivista em Brasília. “Mas quem está na saúde vai tentar segurar, tirar força de onde não tem. Senão, quem que vai ser? A gente torce para as vacinas darem conta e para os casos pararem no máximo nas enfermarias.”
“Os colegas estão meio resignados, são gato escaldado”, afirma Edino Parolo, intensivista em Porto Alegre (RS). “Mas tem várias pessoas que conheço que fazem planos de mudar de área (e sair de UTIs), se especializar em outras áreas. Porque ainda estão se recuperando (da experiência na pandemia).”
O alívio da pandemia vivido entre meados e o final do ano passado havia aberto uma “janela de esperança” entre profissionais de saúde primária – janela que é fechada com a atual explosão de casos, acredita Gabriela Lotta.
“Hoje eles conciliam a fila de testagem para o coronavírus com a fila de vacinação e com a fila de pacientes passando mal, e tudo isso com um componente a mais: o apagão de dados na saúde“, diz a pesquisadora.
Embora os dados da pesquisa mais recente da FGV sejam do ano passado, “a hipótese é de que esses profissionais estejam agora com um sentimento muito ruim, com a saúde mental muito abalada. E, em todos os momentos em que a pandemia cresceu, isso era escancarado pelos números. Agora, isso é muito mais invisibilizado”.
Para Débora Dupas Nascimento, da Fiocruz, é preocupante o fato de tão poucos profissionais de saúde terem acompanhamento psicológico em um momento tão difícil.
“É preciso pensar em políticas públicas locais e nacionais para dar esse apoio a eles”, argumenta. “E também é preciso haver momentos de lazer, com suas famílias ou de atividade física, e momentos de autocuidado. Porque ele (profissional da saúde) cuida dos outros, mas não (tem podido) cuidar de si mesmo.”