Alzheimer, um recomeço? Três histórias surpreendentes sobre a demência

Da esquerda para a direita, Áurea Galli, Eneide Marques Cavalcante e Luzia da Silva: três mulheres, três experiências de convívio com a demência

 “Logo ela deixou de se lembrar de mim. No começo eu falava, ‘olha, sua filha chegou'” Lígia Galli

“Eu não tenho saudade do pão que ela fazia, da roupa que ela costurava. Eu tenho saudade do sorriso, que é a presença dela mesmo.” Ivani Alexandre

“Eu falei, ‘mãe, você entrou na contramão, você quase se matou e matou o Matheus junto’… ela falou, ‘nossa, eu fiz isso?'” Denise Marques

Quando tudo de uma pessoa parece ter ido embora — identidade, linguagem, habilidades, memória… —, onde fica guardado o amor?

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Nesta reportagem, três mulheres cujas mães viveram ou vivem hoje com demência e uma médica geriatra compartilham visões sobre a doença que podem surpreender muita gente.

“Quando você recebe um diagnóstico de demência de um ente querido seu, parece que tudo acabou”, diz a geriatra Celene Pinheiro. “Só que nem sempre é assim.”

“Foram os melhores anos da vida dela e os melhores anos dela comigo”, diz Denise.

Ao compartilhar suas histórias e reflexões, as entrevistadas vão também oferecendo suas respostas para questões comuns entre pessoas afetadas pela demência.

Como cuidar bem de alguém que tem demência? Colocar um ente querido com demência em casa de repouso é abandoná-lo? Como o idoso com demência pode ser incluído na sociedade e quem se beneficia com isso? Até que ponto no desenvolvimento da demência a pessoa é capaz de se sentir amada ou hostilizada?

E quando aceitam fazer seus depoimentos, as mulheres (e sim, é sobre elas que recai, na grande maioria dos casos, a responsabilidade de cuidar) expressam um desejo em comum: contribuir para que a sociedade conviva melhor com uma doença que, segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), afeta hoje 50 milhões de pessoas no mundo e deve afetar mais de 150 milhões em 2050.

Eneide Marques Cavalcante e sua filha, Denise marques

CRÉDITO,ARQUIVO PESSOAL

Legenda da foto,Eneide recebeu o diagnóstico de Doença de Alzheimer em janeiro de 2015 e faleceu em 2019, aos 85 anos. ‘Foram os melhores anos da vida dela’, diz Denise.

Denise e Eneide – Alzheimer, um recomeço?

Denise Marques tem 54 anos e é terapeuta. Sua mãe, Eneide Marques Cavalcante, recebeu o diagnóstico de doença de Alzheimer em janeiro de 2015 e faleceu em dezembro de 2019 aos 85 anos.

“A minha mãe teve Alzheimer, é uma doença que quando a gente ouve a respeito, assusta. Mas eu aprendi que o Alzheimer não é terrível como falam.”

Eneide tinha uma deficiência: ela nasceu sem a cabeça do fêmur, o maior osso da perna.

“Minha mãe foi criada pelos meus avós com muito amor, carinho e cuidado, devido à deficiência dela. E aí eu imagino o choque que ela teve quando se viu num casamento totalmente abusivo. E ela não conseguia sair porque meu pai ameaçava que se ela se separasse ele mataria todos nós — eu, minha mãe e meus avós.”

No relato de Denise, o horror da violência doméstica vivenciada por ela e outros familiares momentaneamente toma lugar central na narrativa.

“Quando meu pai chegava em casa, já estava todo mundo tremendo. De que jeito ele ia chegar? Ele voltava alcoolizado, uma força, entortava a torneira, arrebentava a geladeira. Era uma coisa muito violenta.”

Mais adiante, veremos que, sobre o pano de fundo dos 35 anos de abuso físico e psicológico que Eneide viveu, a doença de Alzheimer que ela desenvolve terá um papel singular em sua vida — e na de sua filha.

Denise conta que seu pai morreu em janeiro de 1997, mas a mãe nunca se recuperou da violência que sofreu e começou a fazer tratamento para depressão. Episódios estranhos, como aquele em que Eneide entra na contramão em uma rua movimentada de Campinas e depois não se lembra do que fez (episódio descrito no início dessa reportagem), são para Denise um prenúncio do que estava por vir.

“Eu entendo que o Alzheimer é uma doença muito sorrateira, silenciosa”, diz.

Dez anos mais tarde, Eneide tornou-se paciente da geriatra Celene Pinheiro.

Dra. Celene Pinheiro

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Legenda da foto,Celene Pinheiro, 47 anos, é geriatra e presidente voluntária da Associação Brasileira de Alzheimer e Outras Demências (ABRAz)

“Eu conheci e acompanhei a dona Eneide por pelo menos dez, doze anos”, diz a médica. “E uma coisa que chamava muito a atenção no relacionamento das duas é que ambas se tratavam muito mal.”

“Quando elas chegavam à clínica, nesse relacionamento conflituoso — a filha falava às vezes de forma ríspida com a mãe — as minhas secretárias já vinham: ‘doutora, nossa, como ela trata mal a mãe! Coitada da nona Eneide!’. E eu falava: ‘gente, calma. A gente não deve julgar. A gente deve ouvir. E entender o cenário onde essa relação se construiu.’ E foi o que acabou acontecendo”, conta Celene.

Em seu depoimento, Denise oferece pistas sobre como era o relacionamento com a mãe: “A Eneide que eu conhecia era extremamente rígida. Eu a chamava de general.”

“Quando eu comecei a namorar a Vera, a minha mãe não aceitou de jeito nenhum”, ela recorda. “Ficou muito indignada e não permitia que eu conversasse com ela sobre isso.”

De repente, a relação entre mãe e filha se transforma, conta Celene.

“Quando ela (Denise) leva (Eneide) para a instituição, e a demência da dona Eneide avança mais um pouquinho, a hora que eu vejo, as duas começam a se relacionar de uma forma leve, bem humorada, alegre, afetuosa. Um afeto muito grande da Denise para com a Eneide.”

A médica conta que não entendia o que estava acontecendo. Até que, um dia, quando visitava sua paciente na clínica de repouso, Denise lhe falou do casamento com Vera, e da recusa da mãe em aceitar a homossexualidade da filha.

Mas o Alzheimer mudaria tudo isso.

Eneide no dia do seu casamento, ao lado do noivo

CRÉDITO,ARQUIVO PESSOAL

Legenda da foto,’Minha mãe foi criada com muito amor, carinho e cuidado, devido à deficiência dela. E aí eu imagino o choque que ela teve quando se viu em um casamento totalmente abusivo’, diz Denise

“Quando a dona Eneide desenvolve a demência, essas convenções sociais caem por terra”, conta Celene. “E ela começa a dar espaço para essa aproximação que, eu acho, a Denise desejava tanto.”

Dois anos após a morte de Eneide, em entrevista por Zoom à BBC News Brasil, Denise ri, maravilhada, ao recordar os últimos quatro anos na vida da mãe. Não ficou nada mal resolvido, diz.

“Quando a minha mãe chegou nesse nível maior do Alzheimer, virou a chavinha. Como se essa couraça que ela desenvolveu para se proteger de tanto sofrimento na vida tivesse caído, vindo abaixo.”

“E aí foram os melhores anos da minha mãe, e os melhores anos meus com ela. Conheci aquela mulher alegre, risonha, que fazia todo mundo sorrir. Carinhosa, abraçava, beijava. Foi uma coisa incrível. Eu vejo que o Alzheimer deu para a minha mãe e para mim uma oportunidade de a gente fazer um resgate. Foi uma história linda.”

Os efeitos inesperados da demência

Na experiência de Eneide, a doença de Alzheimer não apagou apenas regras e convenções sociais. A demência fez também o que anos de terapia e medicamentos não tinham conseguido fazer: eliminou da memória de Eneide sua experiência traumática de violência.

“No caso da Eneide, a demência foi um presente, porque ela pôde apagar essa memória muito triste e pôde voltar a ser a pessoa alegre que ela era antes”, reflete Celene. Mas, infelizmente, não é assim para todos, diz a médica.

“Eu conheço uma senhora que até hoje repete: ‘não bate na criança’. Porque o marido dela era muito violento com os filhos. Até hoje ela verbaliza isso: ‘Ai, coitadinha, não bate.’ Tem pessoas que ficam com essas recordações por terem um valor afetivo muito grande.”

Áurea Galli e a filha, Lígia Galli

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Legenda da foto,Lígia Galli, 59 anos, e sua mãe, Áurea Moraes Galli, 81 anos. Áurea recebeu o diagnóstico de demência em 2012

Lígia e Áurea – Levar pessoa com demência para a instituição é abandonar?

A dona de casa Lígia Galli tem 59 anos. Sua mãe, Áurea Moraes Galli, tem 81 anos e recebeu o diagnóstico de demência em 2012. Desde então, Áurea vive em uma instituição de longa permanência (ILPI).

“Minha mãe sempre foi uma pessoa ativa, prestimosa com a casa, com os cuidados com os filhos. Fazia tricô, crochê, bordado. Ela cozinhava extremamente bem, fazia pinturas a óleo lindíssimas”, conta Lígia.

“Então eu notei muita diferença, retomando, após a morte do meu pai. Quando eu ia visitá-la, a casa estava muito suja, muito largada, com um cheiro ruim, comida estragada na geladeira. Era uma coisa que chocava a mim porque minha mãe não passava nem perto de um tipo de comportamento assim.”

Logo, Lígia percebe que a mãe não pode mais viver sozinha. Seu depoimento nos remete a um dilema quase universal entre pessoas afetadas pela demência: cuidar em casa ou levar para uma ILPI?

“Várias pessoas falaram em colocar minha mãe numa clínica, mas para mim, naquele momento, aquilo era impensável. Aquela ideia de que a gente vai abandonar o idoso, largar aos cuidados de estranhos”, diz.

Lígia decide levar a mãe para morar com ela em Indaiatuba, interior de São Paulo. Ela conta que, no começo, sua filha, que tinha 7 anos de idade, achava certas situações engraçadas.

“Porque minha mãe ainda mantinha um bom humor”, lembra. “Com piadas, com coisas engraçadas, que começaram a ser misturadas com momentos de raiva, mau humor, desespero, de falar sozinha, de tirar a fralda e guardar as fezes em gaveta.”

“Começou um drama muito grande”, lembra Lígia. De um lado, a filha, aos prantos. De outro, uma mãe que agora precisava de atenção 24 horas por dia.

“E quanto mais difícil a situação ficava, mais eu achava que tinha de ser capaz de cuidar”, lembra.

Para ter um pouco de descanso, Lígia começa a levar Áurea para passar o dia em uma clínica.

“Quando eu chegava em casa, o dia que ela ficava em casa, eu abria a porta e sentia o cheiro de fezes. Eu brigava com ela. Sentava no banheiro, fechava tudo, chorava, chorava. Senão eu ia realmente perder a paciência com ela.”

Do consultório, a geriatra Celene Pinheiro acompanhou a luta de Lígia para cuidar da mãe.

“A Lígia é minha paciente. Ela veio me contando como foi o diagnóstico da mãe, de doença de Alzheimer.”

“Ela estava se desdobrando, se desgastando, sofrendo, até que ela fala: ‘meu Deus, só tem uma saída: pedir ajuda especializada'”, recorda a médica.

Mas Lígia ainda precisou de um último empurrão. Um dia, ela recebe um telefonema da clínica onde a mãe estava passando o dia. Áurea tinha caído e sofrido várias fraturas.

“Depois desse acidente, para mim ficou claro que ela tinha de ir para uma clínica de longa permanência”, diz Lígia.

“Minha prima ainda brincou: ‘coitada da tia Aurinha. Deus teve que quebrar a sua mãe toda para você entender que era hora de levar ela para uma clínica. Para ter um tratamento adequado e você também, de ficar cuidando de você e da sua filha.'”

Pintura a óleo feita por Áurea Galli

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Legenda da foto,Culinária, crochê, pintura a óleo: os múltiplos talentos de Áurea Galli

Quando você leva um idoso com demência para uma ILPI, está atendendo a uma necessidade dele, diz Celene Pinheiro.

“Eu falo para os filhos dos meus pacientes, você sabe ler e escrever? Quando seu filho entrou na idade de ser alfabetizado, você levou para a escola, para que ele fosse alfabetizado por especialistas em fazer isso. Não está abandonando seu filho.”

Quando se trata de um idoso com demência, você tem de pensar assim, prossegue a médica. “Você sabe cuidar, mas às vezes a pessoa precisa de algo a mais.”

Livre da responsabilidade de cuidar, Lígia passa a se relacionar com a mãe de maneira diferente.

“Ela me disse que pela primeira vez, depois de muito tempo, se sentia filha da mãe dela”, diz a geriatra.

E é como filha que Lígia viverá um encontro inesquecível com a mãe.

“Um dia, cheguei em uma visita e estava tão triste, tão abalada, com tanto problema da minha filha, do meu marido, falta de dinheiro…”, conta.

“Minha mãe estava no terraço sozinha, sentei e comecei a conversar com ela. Até hoje eu converso com ela, como se ela entendesse. Acaba saindo sem querer e acho que alguma coisinha sobra, lá dentro da cabecinha dela. E eu deitei no colo dela. E chorei tanto, tanto. Falei, ‘poxa mãe, estou com tanto problema’.”

Lígia continua.

“Ela passou a mão na minha cabeça e falou: ‘ah, coitadinha, ela tá triste.’ E falou: ‘eu te amo’. Foi a primeira vez, na minha vida, que eu ouvi a minha mãe falar ‘eu te amo’. Eu chorei muito, e em seguida ela começou a cantar ‘boi, boi, boi, boi da cara preta…’. Que é uma música que ela canta até hoje.”

“Foi um consolo”, conta. “O momento de amor que eu nunca tinha recebido da minha mãe a minha vida inteira. Recebi aquele dia.”

Em seguida, sorrindo entre as lágrimas, Lígia pede: “Você tem um lencinho aí pra mim?”

Áurea e Lígia Galli

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Legenda da foto,Livre da responsabilidade de cuidar, Lígia desenvolve um relacionamento diferente com a mãe

Como se comunicar com quem tem demência? O poder da linguagem não verbal

Ao ler o relato desse precioso encontro entre mãe e filha, alguns talvez se perguntem: mas então, onde é que estava esse sentimento que Áurea expressa? Onde fica guardado o amor?

Talvez não haja uma resposta, claro. Mas o episódio sugere que pessoas com demência são, sim, capazes de sentir e expressar amor.

Para Celene, essa história ilustra a importância da comunicação não verbal com pessoas que têm demência.

“Se a Lígia falasse para a mãe, ‘mãe, eu estou triste’, talvez a mãe não compreendesse porque, muitas vezes, ela não entende o significado da palavra em si. Mas à medida que ela deita no colo da mãe, se coloca nessa posição de fragilidade e chora, e externa esse sentimento dela, a mãe percebe pela posição, e pelo choro, a situação que a filha está passando. E aí ela compreende, e fala: ‘tadinha, ela está triste’.”

Na verdade, pondera a médica, não se trata de entender com a razão.

“Ela entendeu da forma como ela podia, ou (melhor), acho que ela não entendeu, ela sentiu. Tem coisas que não passam pelo campo da compreensão, passam pelo campo do sentimento.”

Por outro lado, observa a médica, uma expressão facial hostil, ou alarmada, pode assustar a pessoa que tem demência.

“Isso é muito nítido. Às vezes, você pode falar uma coisa que não seja agressiva, mas por uma feição agressiva, a pessoa se assusta.”

Um dilema e um privilégio

Antes de concluirmos a história de Lígia e Áurea, é importante ressaltarmos que, para a grande maioria dos brasileiros, o dilema vivido por Lígia — cuidar em casa ou na instituição? — é quase um privilégio. E por que privilégio?

Segundo Celene Pinheiro, que além de geriatra é também presidente voluntária da regional paulista da Associação Brasileira de Alzheimer e Outras Demências (ABRAz), estima-se que entre 1,5 e 2 milhões de pessoas vivam hoje com alguma forma de demência no Brasil.

Faltam estudos sobre o tema, a médica explica, e os números são imprecisos. Ainda assim, aqui vão dados preliminares fornecidos pela Frente Nacional de Fortalecimento às ILPIs:

  • Haveria 7 mil ILPIs no Brasil, abrigando por volta de 300 mil idosos.
  • Dessas ILPIs, 5% apenas seriam públicas. Outras 35% seriam filantrópicas (muitas das quais pagas) e 60% particulares.
  • Entre as pagas, as mensalidades oscilariam entre 70% de um salário mínimo e R$ 20 mil reais.

Ou seja, há uma carência gritante de ILPIs no país. E entre as instituições que existem, a maioria está fora do alcance do brasileiro comum.

Para esses brasileiros, a mensagem da geriatra é: peça ajuda.

“Procure a assistente social no posto de saúde mais próximo”, ela sugere. “Busque saber que recursos estão disponíveis. Medicamentos? Fraldas?”

Ela prossegue.

“É importante que a família se sensibilize e se mobilize para cuidar desse idoso. Muitas vezes, fica uma só pessoa cuidando, isso é muito cruel com quem cuida”, comenta.

Por fim, diz Celene, as instituições de apoio (entre elas a ABRAz) oferecem uma gama de serviços. Aconselhamento jurídico, por exemplo.

“Às vezes, a orientação jurídica permite que a pessoa viabilize recursos para cuidar desse idoso.”

As associações também oferecem suporte emocional e oportunidades para que cuidadores e outras pessoas afetadas pela demência se encontrem, se apoiem mutuamente, troquem experiências e recebam informações práticas sobre como cuidar, explica.

A médica deixa claro que tudo isso está longe de ser suficiente. Mas diz que profissionais de saúde como ela e entidades de apoio vêm pressionando autoridades e políticos para que promovam mais pesquisas sobre as demências e aumentem a oferta de serviços e de instituições públicas para pacientes.

Não por acaso, acaba de ser aprovado no Senado um projeto de lei que institui uma política nacional de enfrentamento à doença de Alzheimer e outras demências.

“Vamos avançar para aumentar o acesso ao cuidado de qualidade e às instituições”, diz.

Mas nem todo paciente com demência precisa ser cuidado em uma instituição. A história que encerra essa reportagem é uma experiência de cuidar bem — em casa.

Luzia da Silva sorri para a câmera, goiaba mordida na mão

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Legenda da foto,Luzia da Silva, 81 anos, vive com Alzheimer e outras demências há pelo menos 8 anos. Ela mora com a filha, a professora aposentada Ivani Alexandre, 59 anos

Ivani e Luzia – O que é um bom evoluir da demência?

Ivani Alexandre, professora aposentada, tem 59 anos. Sua mãe, Luzia da Silva, com 81 anos, vive com Alzheimer e outras demências há pelo menos 8 anos.

“Minha mãe costurava, quando foi para a minha casa ainda costurou. Costurou uma colcha de retalhos maravilhosa, mas nos últimos retalhos foi muito difícil, e eu falo que essa colcha de retalhos foi a história da minha aceitação.”

“Eu insistindo e e eu percebendo que cada dia ela tinha uma dificuldade. Ela não gravava o que tinha feito no dia anterior e a gente começava do zero. Sempre começando do zero. Mas foi super bacana essa colcha, e aí eu entendi.”

Celene Pinheiro diz que começou a atender Luzia em 2012.

“A Ivani percebeu que era entrando nesse mundo de novas necessidades da dona Luzia, e atendendo a essas necessidades, que ela ia conseguir tanto estimular a dona Luzia como também trazer muito mais conforto e serenidade”, diz.

As demências são doenças degenerativas e progressivas, diz a médica. Elas vão piorar — mas podem evoluir de formas diferentes.

O bom evoluir da demência se apoia em dois grandes pilares, explica. Um é a saúde geral do paciente — que depende de fatores como boa alimentação, exercícios físicos e o controle de doenças crônicas como diabetes, por exemplo.

O outro grande pilar tem a ver com as interações sociais, a qualidade do ambiente, o entorno da pessoa.

“Tem casos de pessoas que têm diagnóstico de demência há bem mais de dez anos e estão estáveis porque têm engajamento social, uma vivência interessante com a família, uma vida bem organizada no sentido da rotina”, diz. “Você vê que essas pessoas evoluem melhor.”

Aqui, a médica toca em um ponto central ao novo jeito de pensar a demência que surge no Brasil e no mundo: chega de segregação. A pessoa com demência precisa ser incluída na sociedade, ela defende.

Como incluir a pessoa com demência e quem ganha com isso?

Como educadora, Ivani já tinha familiaridade com o conceito de inclusão. Ela conta que, quando era professora de educação física, adorava ver crianças com deficiência e sem deficiência fazendo aula juntas. Ela diz à BBC News Brasil que, hoje, pratica inclusão em casa, com a mãe.

A família mora em uma chácara. Luzia é incentivada a contribuir com pequenas tarefas, como debulhar feijão, por exemplo.

“A coordenação fina dela ainda é muito boa”, explica.

Mas a história vai ficar ainda mais interessante. Por causa da pandemia, a neta de Ivani, Dyanna, com 4 anos de idade, vem passar uma temporada na chácara.

Agora, são quatro gerações em convivência: Luzia, Ivani e seu marido, o filho do casal e a neta. “A gente foi construindo um relacionamento”, conta.

Bisneta e bisavó passam a fazer refeições juntas. Luzia torna-se “a ajudante” de Dyanna e participa das atividades escolares. “Minha mãe sempre prestativa”, comenta Ivani. “Afinal, ela quer ser útil.”

“Por exemplo, meu filho e minha neta fizeram um bilboquê e a minha mãe brincou junto”, lembra. “Ela mostrou uma habilidade, todo mundo ficou admirado, aplaudiu, e ela ficou toda feliz, sorridente.”

Ivani, Luzia e o irmão de Ivani, Ivo da Silva

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Legenda da foto,’Tem casos de pessoas que têm diagnóstico de demência há bem mais de dez anos e estão estáveis porque têm engajamento social, uma vivência interessante com a família’, diz a geriatra Celene Pinheiro

Ivani não se esquiva de falar do aspecto mais dolorido dessa convivência com a demência.

“Sinto falta do sorriso, que é a presença dela mesmo. Não gosto muito quando ela está com aquele ar ausente, isso me machuca. E a minha neta trouxe essa vivacidade para a minha mãe.”

Luzia, por sua vez, também oferece a Dyanna oportunidades de se incluir e fazer sua contribuição.

“Havia alguns momentos em que minha mãe falava para a Dyanna: ‘ah, vou embora’.”

“Ela levantava, ia saindo, e não dava tempo de a Dyanna vir contar para mim, para eu tomar uma atitude.”

Esse, aliás, é um quadro comum entre pacientes com demência. Durante certos períodos do dia, ficam inquietos e começam a vagar, forçar as portas e querer ir embora. Médicos chamam esse comportamento de Síndrome do Pôr do Sol. Dyanna logo aprende a lidar com ele.

“Ela corria atrás da minha mãe, pegava pela mão e explicava: ‘não, bisa, você mora aqui.’ Aí ela levava a minha mãe no quarto: ‘olha, aqui é seu quarto, aqui é seu banheiro.’ Ela estava repetindo os gestos que tinha me visto fazer”, conta. “Ela se prontificou a ser cuidadora também.”

O depoimento de Ivani é repleto de momentos encantadores, em que bisavó e bisneta parecem habitar um mundo só delas. Dyanna e Luzia pescando. Dyanna sentada na poltrona ao lado da cama da bisavó, trocando histórias.

“A conversa ia longe! E eu ouvindo atrás da porta, para saber se estavam fazendo arte.”

E o episódio em que Dyanna tenta convencer a a avó a sentar em um pequenino balanço, feito sob medida para a criança.

“Se eu não tivesse surtado, eu deveria ter filmado: ‘Não, bisa, senta aqui, põe uma perna, depois põe a outra… não, não tem problema, não vai acontecer nada’.”

Ivani ri, deliciada, ao recordar o episódio.

“E minha mãe simplesmente indo… não têm amarras, nenhuma das duas.”

Poder trocar histórias, conviver e participar da vida da família eleva muito a autoestima da pessoa que tem demência, diz Celene. Mas para a geriatra, a história de Ivani, Luzia e Dyanna mostra que não só o idoso se beneficia.

“A criança também, começa a perceber o outro, a não olhar só para si.”

“E ganha a cuidadora Ivani, que aprendeu tanto e tem tido momentos tão ricos de convívio.”

Dizendo adeus aos poucos

Ao longo de várias entrevistas à BBC News Brasil, Celene Pinheiro não esconde seu desejo de mudar a imagem que se faz das demências. Mas ela reconhece: “Ninguém quer ter de enfrentar um caso de demência na família.”

Por outro lado, “quantos perdem familiares de forma repentina e sofrem tanto”, observa. A demência pode ser a oportunidade de uma despedida gradativa.

“Quando você percebe que essa é uma condição que vai levar tempo para acontecer, e que você pode fazer dele um tempo bom, e se permitir ter esses momentos bonitos, é muito engrandecedor.”

Mas as palavras finais de Celene Pinheiro vão para quem não conseguiu se enxergar nos relatos de Lígia, Ivani e Denise.

Ela conta que, em 18 anos de geriatria, já viu muitas famílias saírem do consultório ou da sala de palestras se sentindo culpadas.

“Não estamos pregando modelos virtuosos, que devam ser erguidos”, explica. “Conhecemos muito mais histórias tristes do que bem sucedidas. Mas, quem sabe ouvir histórias positivas nos ajuda a vislumbrar outras possibilidades?”