Uma das repercussões mais esperadas do avanço da vacinação contra a covid-19 começa a tomar forma no Brasil e no mundo: governos e empresas estão anunciando regras para desencorajar a recusa aos imunizantes.
Entre as políticas mais comuns, destaca-se a criação dos chamados passaportes da imunidade. A proposta é que, para entrar em lugares de convivência com outras pessoas, será exigido um documento (físico ou digital) que comprove a aplicação das doses que resguardam contra o coronavírus.
Alguns políticos e empresários vão um pouco além e já colocam em prática medidas que envolvem multa, demissão, redução de salários e corte de benefícios a quem optar por não ser vacinado, num cenário em que o produto esteja à disposição de todos.
Em certos locais, a decisão é ainda mais extrema. Na Bélgica, alguns times de futebol criaram alas nos estádios para separar vacinados e não vacinados. Já no Paquistão, duas províncias anunciaram que iriam bloquear o sinal de celular dos indivíduos que não aceitassem participar da campanha de imunização.
Mas será que esse conjunto de medidas faz sentido mesmo e realmente coíbe o comportamento de recusa? Ele é suficiente para garantir a retomada das atividades econômicas e sociais de forma segura?
Considerando a vacinação como uma estratégia coletiva e de saúde pública, até que ponto usar esse critério para barrar a entrada de alguém em locais públicos é correto do ponto de vista jurídico e ético?
Em meio a tantos questionamentos, fontes consultadas pela BBC News Brasil entendem que os passaportes da imunidade são inevitáveis, mas precisam ser socialmente justos para evitar o aumento de desigualdades e tensões sociais ou servirem de combustível para as teorias da conspiração.
Situação no mundo
Com uma das campanhas de vacinação contra a covid-19 mais rápidas, Israel foi um dos primeiros países a exigir os tais passaportes de imunidade aos seus cidadãos.
Em fevereiro de 2021, autoridades locais estabeleceram o “passe verde”, um documento necessário para ingressar em shoppings e museus que era garantido a todo mundo que estivesse com as duas doses no braço.
À época, o então ministro da Saúde, Yuli Edelstein, disse que “ser vacinado é uma obrigação moral e parte de nossa responsabilidade mútua”.
“Aqueles que não forem vacinados serão deixados para trás”, discursou.
Mais recentemente, outros países cujas campanhas mais adiantadas também adotaram a ideia, com alguns ajustes locais. Foi o caso de França, Itália, Grécia, Reino Unido, China e Austrália.
Na França, a restrição de circulação de pessoas não vacinadas foi o gatilho para vários protestos nas últimas semanas.
Já nos Estados Unidos, a situação varia de acordo com cada lugar.
A cidade de Nova York, por exemplo, vai exigir, a partir de setembro, um documento que comprove a vacinação de trabalhadores e consumidores em qualquer local fechado de uso comum, como restaurantes, academias e centros de entretenimento (como teatros e cinemas).
O Pentágono, por sua vez, também vai requerer que todos os militares americanos estejam imunizados ao longo do segundo semestre deste ano.
Ainda nos EUA, algumas empresas começaram a se mexer para assegurar a vacinação de seus funcionários.
A companhia aérea Delta Airlines vai cobrar multas mensais no valor de 200 dólares (mais de mil reais) dos colaboradores que não se vacinarem.
Outras empresas, como a financeira Goldman Sachs e as gigantes da tecnologia Microsoft e Google também passaram a exigir a imunização de todos os seus representantes.
No cenário global, existem ainda outros exemplos bem curiosos na lista. Em agosto, quatro clubes da primeira divisão do futebol da Bélgica decidiram criar uma ala separada em seus estádios para reunir os torcedores que não estão 100% vacinados (ou que ainda não tiveram tempo suficiente para tomar a segunda dose). Eles precisam manter o distanciamento físico e devem sempre usar máscaras.
Já no Paquistão, as províncias de Punjab e Sindh decidiram, em julho, que todos os cidadãos que não fossem aos postos de saúde receber as suas doses teriam a linha telefônica e os serviços móveis do celular bloqueados.
Segundo uma reportagem do The New York Times, o ministro da Informação de Sindh, Syed Nasir Hussain Shah, classificou a recusa às vacinas como “inaceitável”.
“O governo está tentando fazer o melhor para que as pessoas recebam o imunizante”, declarou.
Os funcionários públicos dessas regiões do Paquistão que não participarem da campanha também não receberão mais os salários.
Situação no Brasil
Com mais de um quarto da população vacinada com as duas doses, as discussões sobre o assunto começaram a ganhar força no país nas últimas semanas.
As decisões mais recentes a respeito do tópico vieram das cidades de São Paulo e do Rio de Janeiro, que já anunciaram a implementação de algumas regras de convivência entre os imunizados.
Na capital carioca, as pessoas terão que apresentar um comprovante de vacinação em locais fechados de uso coletivo, como teatros, museus, cinemas, estádios e academias.
O documento também será necessário para a realização de cirurgias no sistema público e para o acesso a serviços de cidadania e transferência de renda do município.
“Nosso objetivo é criar um ambiente difícil para aqueles que não querem se vacinar, que acham que vão se proteger sem a aplicação do imunizante e terão uma vida normal. Não terão”, disse Eduardo Paes (PSD), prefeito do Rio de Janeiro.
Já em São Paulo, a gestão do prefeito Ricardo Nunes (MDB) havia anunciado uma política bem parecida no dia 23 de agosto, mas voltou atrás após sofrer uma série de críticas.
De acordo com um decreto publicado cinco dias depois, o passaporte da vacina paulistano será exigido em eventos que reúnam mais de 500 pessoas, como é o caso de jogos, shows, feiras e congressos.
Por ora, bares, restaurantes e shoppings da capital paulista poderão receber o público livremente.
A médica Rosana Richtmann, do Comitê de Imunizações da Sociedade Brasileira de Infectologia, vê as medidas com bons olhos.
“É um direito do cidadão que foi vacinado não ser exposto a pessoas vulneráveis que possam transmitir o vírus num ambiente de risco”, declara.
“Falamos de uma doença com transmissão respiratória, em que o controle depende da atitude de toda a sociedade”, completa.
Esses projetos, porém, são criticados pelo ministro da Saúde, Marcelo Queiroga.
Numa entrevista no dia 27 de agosto, ele afirmou que “o passaporte não ajuda em nada”.
“Você começar a restringir a liberdade das pessoas, exigir um passaporte, um carimbo, querer impor por lei o uso de máscaras e multar as pessoas, nós somos contra”, argumentou.
Essas políticas têm amparo jurídico?
Na avaliação de Fernando Aith, advogado especialista em direito sanitário, medidas que restringem a entrada de pessoas não vacinadas em estabelecimentos estão alinhadas a uma decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) de dezembro de 2020.
“À época, o ministro Ricardo Lewandowski foi o relator da questão e deixou claro que a vacina no Brasil é obrigatória, mas não é compulsória. Ou seja, é um dever do cidadão tomar as doses, mas o poder público não pode pegar ninguém à força”, resume o especialista, que é professor titular da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP).
No plenário, a maioria dos ministros do STF seguiu a avaliação de Lewandowski e a votação terminou com 10 votos a favor da decisão e apenas um contra — o ministro Nunes Marques apresentou ressalvas ao tópico.
“A saída para induzir as pessoas a cumprirem com a obrigação de vacinarem-se é a adoção de medidas legislativas. Com isso, União, Estados e municípios podem limitar direitos para proteger o restante da sociedade. O indivíduo que optar por não se vacinar pode ser proibido de embarcar em voos, de entrar em repartições públicas e de ingressar em comércios com potencial de aglomeração, como cinemas, bares, shows e assim por diante”, continua.
“Em suma, ninguém vai te obrigar a se vacinar, mas você precisa assumir as consequências de não cooperar com esse esforço coletivo”, conclui Aith.
Mas há um ponto importante nesse debate quando levamos em conta a realidade brasileira: a desigualdade na distribuição de doses. Como exigir comprovantes já em setembro, se muitas faixas etárias só estarão efetivamente imunizadas com as duas doses entre outubro e dezembro, seguindo o calendário de cidades e Estados?
“Se o cidadão demonstrar que cumpriu o dever, está com a primeira dose e aguarda o momento de tomar a segunda, ele não pode ser impedido de usufruir dos serviços”, entende Aith.
“Por um lado, há uma iniquidade, uma injustiça. Por outro, existe uma necessidade de proteger a coletividade da disseminação de um vírus por indivíduos que não estão com o esquema vacinal completo. Isso pode gerar inúmeros debates jurídicos”, antevê o advogado.
Vale destacar ainda que, na esfera privada, empresas brasileiras podem demitir por justa causa os funcionários que se recusarem a tomar a vacina.
“O Tribunal Regional do Trabalho já deu decisões recentes nesse sentido. É um dever patronal proteger os trabalhadores, assim como é dever do funcionário resguardar os seus colegas”, diz Aith.
Barreiras científicas e éticas
Para Rosana Onocko Campos, presidente da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), as medidas que incentivam a vacinação são clássicas e históricas.
“Em muitos países, as crianças só podem ser matriculadas em escolas públicas se os pais apresentarem a carteirinha de vacinação atualizada”, exemplifica a especialista, que também é professora da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
Mas, segundo a avaliação dela, o Brasil não deveria pensar agora nos tais passaportes da imunidade.
“Estamos vivendo sob o risco de uma terceira onda, com a expansão da variante Delta do coronavírus, as atividades reabrindo e o péssimo exemplo do Governo Federal, que é um dos únicos do mundo a desincentivar o uso das máscaras”, lista.
“Vamos ter passaporte do quê? Isso mais me parece uma cortina de fumaça, uma firula, que impede as discussões sobre o que realmente importa, como aumentar a testagem e o isolamento”, completa Campos.
O infectologista Dirceu Greco, professor emérito da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) segue uma linha de raciocínio parecida.
“Esses certificados podem dar uma falsa sensação de segurança, uma ideia de que o fato de estar vacinado e ter lugares abertos significam que não há mais risco de ser infectante ou de se infectar”, interpreta.
“Nossos problemas não estão resolvidos com o passaporte, ainda mais agora, com a variante Delta”, complementa.
Do ponto de vista ético, Greco também enxerga ameaças nessas discussões.
“No cenário atual, existem muitos riscos de tomar decisões erradas, que aumentem a iniquidade e prejudiquem quem não tem acesso às doses”, alerta o médico, que também é presidente da Sociedade Brasileira de Bioética.
Muitas incertezas pela frente
Enquanto gestores públicos debatem o assunto e tentam encontrar os melhores caminhos para garantir uma retomada à vida normal, os passaportes da vacina esbarram em muitas perguntas sem respostas.
A primeira delas é de ordem prática: como garantir que os estabelecimentos cumpram a decisão? Haverá fiscalização? Qual o risco de pessoas não imunizadas falsificarem o documento e enganarem as barreiras de controle?
Segundo, existem diversas questões científicas que não estão bem definidas. Não se sabe ao certo, por exemplo, quantos meses ou anos dura a proteção vacinal e se haverá a necessidade de reforços de tempos em tempos.
Também é preciso levar em conta os diversos tipos de imunizantes, cada um com uma eficácia.
Por fim, como estimar o perigo das novas variantes e o quanto elas conseguem “driblar” a imunidade dos indivíduos já imunizados?
Em Israel, por exemplo, o passe verde durará apenas seis meses após a segunda dose. Dali em diante, todos os cidadãos com mais de 12 anos terão que tomar uma terceira injeção para renovar o documento.
No Brasil, que tem uma parcela grande da população com apenas a primeira dose, nenhum desses detalhes parece estar 100% definido.
Mas vamos pensar num cenário em que temos doses suficientes para toda a população (como acontece nos Estados Unidos, por exemplo): o que aconteceria com os brasileiros que se recusassem a tomar as doses?
Os passaportes seriam uma maneira de coibir esse tipo de comportamento, já que dificultariam a vida e impediriam a entrada em muitos locais.
Mas Greco, da UFMG, entende que existem outros caminhos que devem ser considerados.
“Temos pessoas que não querem se vacinar porque estão com medo ou não foram convencidas da necessidade de tomar as doses. Há outras que são influenciadas pelas notícias falsas”, diferencia o infectologia.
“Nesses casos, a informação de qualidade é crucial para diminuir esse comportamento hesitante”, conclui.
Um problema do tamanho do planeta
Se essas questões já são difíceis de serem decididas quando pensamos na realidade interna dos países, imagine como a coisa se complica se considerarmos o mundo inteiro.
Embora existam regulações parecidas para algumas vacinas específicas, como a exigência de estar protegido contra a febre amarela para ingressar em alguns países, na covid-19 falamos de uma regulamentação que envolve bilhões de pessoas em todos os continentes.
Entidades como a Organização Mundial da Saúde (OMS) e a Anistia Internacional já se posicionaram contra o passaporte de vacinação.
Na avaliação de seus representantes, esses documentos poderiam ampliar a desigualdade global e criar cidadãos de duas classes.
Os primeiros, vacinados, estariam livres para viajar, trabalhar e viver como bem quisessem.
Os segundos, não vacinados por falta de doses nos locais onde moram (e não por uma decisão pessoal), continuariam com todas as atividades restritas pela pandemia.
E essa desigualdade fica aparente quando vemos os números da vacinação contra a covid-19: enquanto os países ricos imunizaram praticamente toda a população adulta e já falam em terceira dose, os lugares mais pobres do globo não conseguiram proteger nem 1% de seus cidadãos.
“Temos que ser cuidadosos, porque estamos lidando com uma situação de iniquidade tremenda no mundo, em que a probabilidade de você receber uma vacina tem a ver com o país onde vive, a riqueza e a influência que você ou seu governo têm em mercados globais”, disse Michael Ryan, diretor de Emergências da OMS, em 15 de março.
Em julho, o diretor-geral da OMS, Tedros Adhanom Ghebreyesus, usou o termo “apartheid das vacinas” para descrever a situação.
Ou seja: na maior parte do globo, as pessoas só não estão vacinadas por absoluta falta de doses, e não por uma escolha individual ou um posicionamento contrário aos imunizantes.
Num artigo para o Jornal de Saúde e Direitos Humanos, Kayum Ahmed, diretor da Divisão de Acesso e Prestação de Contas da Open Society Foundations, nos Estados Unidos, escreveu que, do ponto de vista global, os passaportes de vacinação nos levariam a uma distopia.
“Os não vacinados passariam a ocupar um status de ‘mortos-vivos’, um termo usado pelo [filósofo camaronês] Achille Mbembe para descrever uma forma de existência social em que a distinção entre vida e morte é ambígua”, aponta.
“Enquanto os não vacinados precisam negociar sua sobrevivência nessa nova distopia, a classe dos vacinados estará jantando em restaurantes (em locais fechados). Eles só precisarão mostrar seus passaportes na tela dos smartphones para a aeromoça, o concierge e o segurança”, completa.
Um prato cheio para os conspiracionistas
Além das questões da desigualdade, os especialistas também temem que a adoção dos passaportes possa reforçar teorias da conspiração contra os imunizantes e as políticas públicas.
Dayane Machado, que faz pesquisa sobre desinformação em saúde com foco em vacinas e covid-19 para seu doutorado na Unicamp, já vê isso acontecer na prática.
“Os criadores de conteúdo que monitoramos continuam a alimentar teorias da conspiração. Segundo eles o ‘plano de dominação e redução mundial’ estaria dando certo, à medida que parte da população continua se vacinando e os países discutem a necessidade de comprovação para realizar algumas atividades”, relata.
Segundo Machado, alguns influenciadores chamam o documento de “passaporte nazisanitário”, numa alusão ao nazismo.
“Eles alertam que falta pouco para que essa ‘perseguição’ chegue ao Brasil”, conta.
A pesquisadora aponta que duas palavras são muito fortes no vocabulário desses grupos: dominação e redução.
“O termo ‘dominação’ se refere à ideia de que a vacina seria uma ferramenta de controle da população, enquanto ‘redução’ traz a ideia de que esses produtos seriam perigosos e poderiam matar, causar doenças ou transformar as pessoas em ‘super espalhadores’ de vírus”, detalha.
Machado também diz que os ataques às vacinas continuam a acontecer e muitos desses produtores de conteúdo se aproveitam para encorajar medidas “alternativas” para fortalecer o sistema imunológico, incluindo a venda de livros, cursos, vitaminas e remédios.
Não custa reforçar, claro, que todas essas alegações dos teóricos da conspiração são falsas e não encontram respaldo algum na ciência.
Dá pra melhorar
Mesmo diante de todas essas incertezas sobre o futuro daqueles que não estiverem vacinados (seja por escolha própria ou por falta de doses), é difícil pensar que os países voltarão atrás em suas decisões e não seguirão com os planos de reabertura, que têm os passaportes como um de seus principais fiadores.
Considerando que essas políticas são praticamente inevitáveis, os professores de filosofia Anders Herlitz, do Instituto de Estudos Futuros de Estocolmo, na Suécia, e Nicole Hassoun, da Universidade Binghamton, nos Estados Unidos, acreditam é possível chegar a um meio termo, reduzindo as desigualdades e as injustiças pelo caminho.
“Os passaportes são uma promessa de retorno à normalidade na vida social e econômica, mas seus benefícios podem ser colhidos de maneira desigual e não está claro se eles são éticos”, escreveram, num artigo publicado na revista Scientific American.
Esses comprovantes deveriam ser dados apenas àqueles que trazem pouco risco à saúde das demais, acreditam os professores.
“O sistema também deveria permitir algumas exceções, incluindo pessoas que não tiveram acesso às vacinas por questões de saúde mas precisam trabalhar, ir à escola, viajar…”, propõem.
O advogado Fernando Aith, da USP, pensa que é hora de reformular a governança global em saúde para que a OMS e outras instituições multilaterais tenham instrumentos mais adequados para enfrentar futuras pandemias.
“As regras que temos agora se mostraram insuficientes para lidar com um problema desse tamanho”, avalia.
A professora Rosana Onocko Campos, da Unicamp, concorda. “A pandemia mostrou o fracasso e a perda de influência das entidades internacionais. O critério do ‘meu quintal primeiro’ prevaleceu”, lamenta.
“Como fenômeno global, a pandemia não pode ser controlada em poucos territórios. Esse é um pensamento inadequado que só vai exacerbar o círculo perverso da desigualdade e da pobreza”, finaliza.