Maior conjunto de favelas do Rio de Janeiro, onde habitam cerca de 140 mil pessoas, a Maré sediará um estudo liderado pela Fiocruz sobre o impacto da vacinação da Covid-19 em sua população. A iniciativa é uma colaboração entre a Redes da Maré, a Prefeitura do Rio de Janeiro, por meio da Secretaria Municipal de Saúde, e a Fiocruz. Tendo em vista as peculiaridades presentes em territórios de favelas e periferias, o estudo propõe um olhar que vai além do levantamento da efetividade direta das vacinas na proteção contra o vírus e suas variantes.
“Olhar o impacto da vacinação numa grande comunidade já seria algo inédito. Agora pensar que isso será realizado na Maré, que tem dimensão populacional superior a 96% dos municípios do país, é algo único, que nos permitirá um mapeamento com características singulares. Aspectos da doença em si, como a dinâmica de transmissão do vírus no território, a vigilância de suas variantes e o acompanhamento de possíveis efeitos adversos das vacinas serão outros pontos abordados pelo estudo, para além da efetividade da vacina, que é o foco principal”, explica o pesquisador da Fiocruz e coordenador do estudo, Fernando Bozza.
Ancorado em dois pilares centrais, a vacinação em massa e a testagem em grande escala da população, o estudo é um desdobramento de diversas ações de mobilização social que vêm sendo implementadas na Maré desde junho do ano passado com o projeto Conexão Saúde – De Olho na Covid. O projeto, que hoje é referência no combate à pandemia em territórios de favelas, oferece gratuitamente serviços de testagem, telessaúde e apoio no isolamento domiciliar a pessoas com Covid e foi preponderante para o avanço da pesquisa entre os moradores da Maré.
A partir desta experiência, que reúne a Fiocruz, SAS Brasil, Redes da Maré, Dados do Bem, Conselho Comunitário de Manguinhos e União Rio, já foram realizados mais de 27 mil testes diagnósticos (entre sorologia e PCR), 10,5 mil consultas de telessaúde, acompanhamento e apoio para o isolamento domiciliar de mais de 1 mil famílias com pessoas que testaram positivo para Covid – além de múltiplas ações de comunicação territorial.
“Graças à mobilização dos diversos parceiros que se envolveram desde o início, foi possível integrar a atenção básica de maneira sistêmica ao enfrentamento da pandemia na região, oferecendo, desde a possibilidade de um diagnóstico precoce e acompanhamento clínico até a testagem molecular e o rastreamento de contactantes. O impacto foi sentido no controle da pandemia com a redução de 61% da mortalidade nos primeiros dez meses de implantação do projeto. Esse legado é acrescido agora com a vacinação de toda a população, o acompanhamento da sua efetividade na proteção dos moradores e a possibilidade de intensificar a vigilância genômica no território”, ressalta o assessor de Relações Interinstitucionais da Fiocruz, Valcler Rangel.
Desta forma, o ponto de partida do estudo será a campanha de vacinação em massa, promovida pela Secretaria Municipal de Saúde a partir de intensa mobilização no território, que ocorrerá entre os dias 29 de julho e 1º de agosto. A intenção é que, durante os quatro dias de vacinação, toda a população adulta jovem, a partir dos 18 anos, seja vacinada pelo menos com a primeira dose do imunizante da AstraZeneca, produzido pela Fiocruz. A Prefeitura mobilizou também a Subprefeitura da região, a Secretaria de Educação e toda a rede de 45 escolas da Maré, com o objetivo de garantir a mais ampla cobertura vacinal.
A meta é antecipar a vacinação de 31 mil pessoas, que junto com as demais faixas etárias que já haviam sido contempladas pelo calendário do município, passam a ser monitoradas pelos grupos de pesquisa. A efetividade da vacina será avaliada, levando em conta os seguintes critérios: idade; sexo; tipo de vacina que foi ministrada; tempo de infecção após a vacinação, tempo até a segunda dose, ocorrência de casos graves e prevenção de óbitos.
Um outro grupo significativo da população é composto pelas crianças e pelos adolescentes que embora não estejam dentro do público-alvo da vacinação, também integram a pesquisa. “Um dos objetivos do estudo é entender a dinâmica da transmissão e a proteção indireta que esse grupo pode adquirir uma vez que a família esteja imunizada. Queremos entender se a vacinação em massa da população adulta inibe a circulação do vírus de forma a proteger também as crianças e os adolescentes”, explica Bozza.
Metodologia em duas etapas
O estudo inclui duas linhas de atuação que serão conduzidas de forma simultânea. A primeira consiste na identificação de casos sintomáticos que serão submetidos ao teste de RT-PCR. Os participantes devem informar imediatamente ao centro caso apresentem os sintomas definidores de suspeita de Covid-19. Além disso, de forma ativa, as equipes do estudo também acompanharão as atividades das Unidades Básicas de Saúde para orientar a realização do teste molecular dentro da janela de sete dias desde o início dos sintomas.
O resultado da testagem será cruzado com o monitoramento da situação vacinal e o desfecho do quadro, com sua classificação final de gravidade. Desta forma, será possível calcular a proteção que a vacina está conferindo à população. Além disso, todos os resultados positivos serão encaminhados para realização de sequenciamento genético, a fim de identificar possíveis variantes do vírus e colaborar na vigilância genômica da região.
Já a segunda linha é caracterizada como uma coorte populacional composta por 2 mil famílias residentes na Maré, mobilizando, ao todo, aproximadamente 8 mil indivíduos, que serão acompanhados por seis meses. Nesta ação será realizada a avaliação de soroprevalência, proporção de vacinados e ocorrência de casos, com o intuito de mapear a transmissão do vírus no ambiente familiar. A análise incluirá também os membros que não são público-alvo da vacinação: “É nesta etapa que conseguiremos levantar os dados para responder a questão se ao vacinar os adultos, também protejo as crianças?”, complementa o coordenador do estudo.
Mobilização do território como diferencial
A mobilização dos moradores para adesão à vacinação em massa e ao estudo conduzido pela Fiocruz está sendo liderada pela Redes da Maré, instituição com mais de 20 anos de atuação no território. A organização também tem feito a articulação de outros atores como associações de moradores, influenciadores, comunicadores populares e lideranças para informar e esclarecer a população da Maré sobre a importância das ações.
Durante os dias de vacinação, mais de 500 pessoas, entre articuladores de campo e voluntários, estarão envolvidas na logística de mobilização e informação dos moradores. “Este é um momento importante, não só de reconhecimento da potência do território e do nosso trabalho, mas do estabelecimento de direitos, de forma republicana, para os moradores de favelas. A parceria com instituições de diferentes níveis é um caminho concreto para reverter os danos causados pela pandemia e para a implementação de políticas públicas que respondam aos desafios estruturais que vivenciamos no território”, salienta a diretora da Redes da Maré, Eliana Silva.
“A mobilização social que está por trás de toda essa iniciativa é um fator central para os bons resultados observados até aqui e continuará sendo determinante para o sucesso da campanha de vacinação. Ter a vacina é importante, mas a comunicação eficaz para conseguir mobilizar a comunidade sobre a importância de ir se vacinar é um ponto central. Esse estudo traz um aprendizado fundamental sobre esse aspecto da mobilização na periferia”, conclui Valcler Rangel.