Seminário debateu a agenda dos direitos humanos nas Nações Unidas e a pandemia

Uma “pandemia de desigualdades”, que tira até mesmo o acesso à água limpa para lavar as mãos, é um dos fatores que agravaram a disseminação do Sars-CoV-2 na América Latina e no Caribe. A avaliação é da alta comissária para Direitos Humanos nas Nações Unidas e ex-presidente do Chile, Michelle Bachelet. Médica, ela abriu, nesta quinta-feira (15/4), os Seminários Avançados em Saúde Global e Diplomacia da Saúde, do Centro de Relações Internacionais em Saúde (Cris/Fiocruz).

Sob o tema A agenda dos direitos humanos nas Nações Unidas e a pandemia, o evento (veja abaixo) contou ainda com as participações de Nísia Trindade Lima, presidente da Fiocruz; Tlaleng-Mofokeng, relatora especial do Conselho de Direitos Humanos sobre o Direito à Saúde; Lawrence Gostin, professor da Universidade de Georgetown, em Washington; e Armando de Negri, pesquisador convidado do Cris/Fiocruz. Mediado por Paulo Buss, coordenador do Cris e presidente da Aliança Latino-americana de Saúde Global (Alasag), entidade que copatrocinou o evento, o seminário virtual mostrou como saúde e direitos humanos andam lado a lado.

Para a ex-presidente chilena, poucas vezes se viu uma demonstração tão forte do valor dos direitos humanos, do direito à proteção social e à saúde pública, como durante esta pandemia de Covid-19. Embora em 2020 América Latina e Caribe respondessem por 8,6% da população mundial, a região registrou até dezembro do ano passado 18,6% das mortes. Além disso, a doença fez aumentar a pobreza e a pobreza extrema que passaram, respectivamente, de 30,5% para 33,7%, e de 11,3% para 12,5%, de 2019 para 2020.

“Aqueles que já eram mais vulneráveis, como mulheres, indígenas, negros, população de rua, LGBTIQ e refugiados, foram os mais afetados. Isso choca, mas não surpreende”, observou Bachelet, que foi a primeira encarregada da ONU Mulheres. “A Covid-19 deixou em evidência uma verdadeira pandemia de desigualdades, no mundo e em nossa região. É necessário que os governos ajam para garantir meios de subsistência e acesso a serviços. Agir para as pessoas não perderem suas casas e ficarem mais expostas ao vírus. Os direitos humanos devem estar no centro da resposta e de recuperação da crise.”

Em fevereiro, o Alto Comissariado para Direitos Humanos apresentou um relatório sobre o impacto global da pandemia, mostrando um fracasso em abordar causas estruturais, com países ricos e pobres não conseguindo satisfazer necessidades básicas de suas populações. Problemas de hoje são resultado de anos de falta de investimento em saúde pública e estrutura sanitária, ressalta. Para ela, a saída da crise necessita de uma cooperação sem precedentes, com a participação da sociedade.

Se a palavra desigualdade foi muito ouvida no evento, a solidariedade também foi destacada. “Isso, no entanto, não exime do Estado a responsabilidade em garantir o direito à saúde e à vida”, observou a alta comissária. “Saúde é um direito indispensável porque outros direitos dependem dele”, acrescentou.

‘Vacina para a fome’

A comissária destacou ainda que “qualquer vacina contra a Covid-19 deve ser distribuída como um bem público mundial. A crise sanitária e socioeconômica precisa ser abordada conjuntamente. Não podem escolher entre saúde e economia. Como pedir que uma pessoa lave as mãos se ela não tem acesso a água, ou pedir distanciamento se moram em aglomerações?”.

Ela destacou que, junto com a questão do clima, a pandemia é a ameaça mais grave em gerações. Mas, para ela, a situação oferece uma escolha: lutar para voltar à “suposta normalidade”, que pode agravar desigualdades, ou optar para sair dessa crise de uma forma melhor. E o caminho para isso, disse, é se basear nos direitos humanos: “fazer um novo contrato social” com oportunidades para todos, priorizar a saúde, eliminar discriminações e incentivar a participação do público na elaboração de políticas mais eficazes.

“Essa não é uma crise que possa ser enfrentada com negação e desinformação. Direitos humanos são o reconhecimento de que cada um de nós tem o direito de viver com dignidade”, disse. “Os direitos humanos são a nossa vacina para a fome”.

Bachelet destacou ainda a falta de dados desagregados, que não permitem fazer a correlação entre grupos vulneráveis. Sem essa identificação, ressaltou, fica mais difícil definir políticas públicas e aumenta o risco de deixar alguém para trás. Ao falar em seguida, Nísia destacou o trabalho da Fiocruz Bahia, cujo Centro de Integração de Dados definiu um índice para medir desigualdades.

A presidente da Fiocruz destacou que “neste momento, ouvir Michelle Bachelet tem um peso especial para nós, num momento de gravidade”. “Aqui no Brasil, ainda que tenhamos na vacina uma estratégia importante, é preciso que ela seja combinada a outras estratégias de saúde pública e políticas sociais para sair da crise”, disse, destacando o papel da Fiocruz em múltiplas frentes. “Nós trabalhamos tanto no campo de vigilância quanto no de vacinas, e esta semana devemos entregar 5 milhões de doses feitas em parceria com AstraZeneca e Oxford”, informou Nísia, lembrando ainda que a Fundação busca a soberania na produção de insumos.

Acesso a vacinas

A médica sul-africana Tlaleng-Mofokeng, relatora especial do Conselho de Direitos Humanos sobre o Direito à Saúde e com um longo trabalho em relação à saúde da mulher e reprodutiva, disse que a pandemia ressaltou as desigualdades Sul-Norte e que considerava desanimador como poucas recomendações do grupo foram adotadas. Ela criticou ainda a “nacionalização das vacinas”, que dificultou acesso de países à imunização contra a Covid-19. “Acesso à vacina é um direito humano”, destacou. “Temos que ver esses abusos. Eles são violações e indicam as relações de poder entre nações colonizadoras e colonizadas”.

“Foi repetido várias vezes que o vírus não conhece fronteiras, mas aqueles com poder estão decididos a reescrever as desigualdades do colonialismo”, disse Mofokeng. “Ninguém pode ter sucesso se todos não estiverem protegidos.”

O tema foi retomado pelo professor Lawrence Gostin, especialista em Direito em Saúde Global, que destacou que Estados Unidos, Canadá e União Europeia estão comprando mais doses da vacina contra a Covid-19 do que o necessário, numa espécie de desmanche da solidariedade global em que mesmo a Covax, mecanismo de distribuição de vacinas da Organização Mundial de Saúde (OMS), não consegue doses suficientes. “Enquanto países ricos chegam quase à normalidade, com a economia se recuperando, os mais pobres podem levar anos para isso”, disse.

Para Gostin, diretor do Centro Colaborador da Organização Mundial da Saúde sobre Legislação Sanitária Nacional e Global, quando no futuro for escrita a história desta pandemia vai ser registrado “um fracasso em relação aos direitos humanos”. Ele citou a supressão de informações no início da pandemia, líderes mundiais que não responderam com base na ciência e saúde pública, e outros que usaram poderes de emergência para aprovar leis contra adversários.

Gostin destacou ainda a necessidade de escrever uma história diferente numa próxima pandemia, defendendo uma nova “arquitetura da saúde global com os direitos humanos como base”. Entre suas propostas para a atual crise estão que os países ricos destinem 2% de sua verba para a Covid para a ajuda global, o que significaria mais de US$ 10 trilhões, e que o G-20 decrete uma moratória da dívida de países de renda baixa ou média.

Direito do desenvolvimento

Já Armando De Negri, diretor de Medicina Preventiva na Área Política e Sistema de Saúde e coordenador executivo do Fórum Mundial de Saúde para Movimentos Sociais, falou sobre a questão no contexto do direito ao desenvolvimento, um movimento que tem origem na Conferência de Bandung, na Indonésia em 1955, quando países do Sul afirmaram uma posição de não alinhamento com os dois grandes blocos que surgiram da Segunda Guerra Mundial. Eram reivindicações dirigidas ao desenvolvimento que permitissem sair daquela posição colonial e pós-colonial. “O direito ao desenvolvimento é uma espécie de reivindicação do conjunto de direitos”, explicou. “Se o direito à saúde não for amparado no direito ao desenvolvimento, ele não vai ser assegurado”, disse.

Foram necessários mais 20 anos para a realização de duas conferências divididas em Direito Civil e Político e Direito Econômico, Social e Cultural, até chegar à Declaração do Direito ao Desenvolvimento em 1986, juntando essas duas dimensões. Para De Negri, a questão gera incômodo entre poderes porque determina que um país é responsável também pelo impacto de suas políticas em populações fora de sua jurisdição. Para ele, a pandemia é hoje um reflexo a essa assimetria de poder, em que países menos desenvolvidos só terão cobertura vacinal efetiva em 2024 se o atual ritmo for mantido.

O evento, que foi transmitido pelo YouTube e a TVT, veículo de comunicação educativo, está disponível na internet. O Cris/Fiocruz já organizou 25 seminários, com a participação de mais de 150 especialistas e seu material na internet já foi acessado por mais de 30 mil pessoas. “Esperamos que depois ele possa ser usado em aulas por estudantes, professores e gestores, além de profissionais de saúde, diplomacia e relações internacionais”, disse Paulo Buss, que além de coordenador do Cris foi por duas vezes presidente da Fiocruz e hoje é presidente da Alasag.