Tradicional projeto da USP une diversas áreas de conhecimento em imersões pelo interior do País
Uma estudante de fisioterapia discute com um de engenharia como adaptar uma cadeira de rodas que possa ser usada no banheiro. Uma dentista e um nutricionista conversam com crianças sobre saúde bucal enquanto uma terapeuta ocupacional e uma psicóloga pensam na melhor abordagem em uma oficina para mulheres sobre violência de gênero. Imagine dezenas desses e outros estudantes juntos em viagens para construir ações de saúde e educação em diferentes cidades do Brasil. É disso que o projeto Bandeira Científica da USP trata.
Criado em 1957, o Bandeira passou por diversas transformações. No início, o propósito era realizar viagens a outros municípios a fim de coletar informações para pesquisas e estudos na área de saúde. Interrompido em 1969, seria resgatado quase duas décadas depois, em 1998, por alunos da Faculdade de Medicina da USP (FMUSP).
Desde a retomada, o conceito mudou. O projeto passou a servir como forma de contribuição social e assistência médica nas cidades para onde vai, realizando atendimentos, visitas domiciliares, doações de óculos, próteses e órteses, entre outras atividades. Diversas áreas também passaram a integrar o projeto: medicina, fisioterapia, nutrição, engenharia, odontologia, psicologia, administração, economia, fonoaudiologia, terapia ocupacional, saúde pública e farmácia compõem o quadro atual.
Cidades dos Estados de São Paulo, Rondônia, Maranhão, Minas Gerais, Alagoas, Rio Grande do Norte, Mato Grosso do Sul, Bahia, Pará, Pernambuco, Espírito Santo e Goiás já foram atendidas nessa nova fase do Bandeira Científica.
Escolhendo o destino
A cada ano, o Bandeira seleciona a cidade na qual irá atuar. Alguns fatores fundamentais são pensados em conjunto: o Índice de Desenvolvimento Humano do município (entre 0,5 e 0,7 é o que se busca), o tamanho da população (sendo a faixa ideal entre 20 e 40 mil habitantes) e, especialmente, a existência de cobertura de 70% da Estratégia Saúde da Família, programa de saúde básica do governo federal.
Feita a escolha, a equipe começa a fase de preparação, na qual são discutidas as atividades a serem realizadas, e considera-se as demandas específicas do lugar a ser visitado. Em dezembro ocorre a imersão, quando a equipe toda viaja ao município e permanece por 12 dias. A parceria com a Força Aérea Brasileira, que auxiliava com o transporte, teve de ser interrompida em 2016 devido a cortes de verba da instituição. Naquele ano o Bandeira fretou ônibus.
Alguns meses depois, um pequeno grupo retorna à cidade para finalizar o ciclo, quando se apresenta uma devolutiva das ações desenvolvidas e discute-se os relatórios elaborados.
O sustento do projeto se dá de formas variadas. Empresas parceiras doam materiais e equipamentos, como produtos de higiene bucal ou óculos. O patrocínio também pode vir em dinheiro. Outras instituições e entidades, como a Pró-Reitoria de Cultura e Extensão (PRCEU), o Hospital das Clínicas, associações de ex-alunos e centros acadêmicos da USP também contribuem. No final do ano passado, foi feita uma campanha on-line de financiamento coletivo para a viagem a Acreúna, em Goiás.
O cuidado em conjunto
Em meio a suas mudanças, o Bandeira Científica acabou também revendo seu próprio vocabulário, deixando para trás termos tradicionais. Assim as “expedições” passaram a ser chamadas de “imersões”, e passou-se a valorizar os momentos de antes e depois delas, a “preparação” e o “seguimento”, inclusive para se ressaltar a continuidade entre as etapas. Até o termo “bandeirantes”, antes usado para designar a maioria dos estudantes participantes, foi trocado por “acadêmicos”. Além desses, o projeto conta com diretoria, conselheiros, discutidores e colaboradores.
A postura mais atenta à integração dos membros e momentos do projeto não se restringe a uma mudança de nomes. É algo que orienta o desenvolvimento de todas as atividades. É o que contam Isabela Froes, aluna do terceiro ano de Fisioterapia, e Letícia Belchior, no quarto ano de Terapia Ocupacional, cursos da FMUSP. Ambas participaram das duas últimas viagens do Bandeira: para Limoeiro de Anadia (Alagoas), em 2015, e Acreúna (Goiás), em 2016. Isabela finaliza em junho sua atuação na diretoria da entidade, que já vem sendo ocupada por Letícia.
Elas ressaltam que o projeto não pretende ser um atravessamento na cidade, mas uma iniciativa que procure as potencialidades do município, servindo como um investimento na saúde local. Não se trata, portanto, de prestar um favor à saúde de lugares carentes, apontar os problemas locais e, depois de alguns dias, levantar acampamento. O que se quer é construir algo em conjunto, tendo a sensibilidade ao contexto local e àqueles que lá vivem como orientação permanente.
“A ideia é que os profissionais de saúde da cidade também possam participar e discutir os casos com a gente. Eles são as pessoas que estão mais próximas desta população que a gente vai atender, estão mais próximos do cuidado. Então é melhor construir isso com eles para que (o atendimento) se propague durante o ano”, afirma Letícia.
O cuidado do outro
Assim como a integração com a comunidade e os serviços de saúde locais são fatores decisivos para que a imersão seja bem-sucedida, o mesmo vale para a relação entre os membros da equipe do Bandeira Científica. Como diz Isabela, “falamos muito em cuidado na área de saúde, mas cada um tem um tipo de cuidado. Isso é muito diferente nas nossas graduações. Ali, vamos conseguindo um espaço para construir juntos um modo de fazer, um modo de pensar saúde e cuidado”.
A atuação conjunta de diferentes profissionais procura ampliar o que se pode entender por saúde e cuidado, ressaltam as acadêmicas. Saúde não se trata apenas de ausência de doença ou de realização de atendimento. Cuidado não é algo que apenas médicos podem oferecer. O projeto é uma forma de os próprios profissionais de saúde compreenderem melhor o trabalho uns dos outros.
E o cuidado de si
Não é simples articular a variedade de pessoas e atividades envolvidas no Bandeira. O aprendizado com as atividades sobre questões de gênero é um bom exemplo. Isabela conta que, em 2015, uma das atividades coletivas pretendia trabalhar questões de violência e empoderamento com mulheres de Limoeiro de Anadia.
Dança, produção de desenhos e debates estavam previstos. A experiência foi proveitosa, mas o público foi maior que o imaginado e as discussões não abordaram os temas propostos como se previa. O receio de se tocar em temas delicados sem saber como lidar exigiria um preparo conjunto da equipe.
Refletindo sobre essas dificuldades, tentou-se uma nova abordagem em Acreúna. Ali procurou-se falar de forma mais direta as questões de gênero, tematizando a falta de mulheres em posições de liderança e experiências de violência sutil. O desenvolvimento já foi outro. Na etapa de seguimento, com o retorno de alguns membros a Acreúna, ouviu-se relatos de assistentes sociais de que, motivadas pela atividade com o Bandeira, mulheres da cidade criaram um grupo próprio para continuar as discussões.
Auxiliar os outros a se organizarem para cuidarem de si – esta não deixa de ser uma finalidade da saúde.