Pesquisa investiga epidemia midiática de febre amarela

Pesquisadora investiga epidemia discursiva durante cobertura midiática de epizootia de febre amarela no verão de 2008

Apesar do caso parecer dentro da normalidade, dissertação diz que “houve uma epidemia midiática com impactos muito importantes” – Arte: jornal.usp.br

Entre dezembro de 2007 e abril de 2008, o Ministério da Saúde divulgou, por meio de boletim publicado pela Secretaria de Vigilância em Saúde, ter recebido 70 notificações de casos suspeitos de febre amarela. Com apenas 40 confirmações, o que se registrou como uma epidemia na época foi, de acordo com a pesquisadora Cláudia Malinverni, da Faculdade de Saúde Pública (FSP) da USP, um fato social produzido a partir de uma incisiva cobertura jornalística.

Em sua dissertação de mestrado, Cláudia analisou um total de 118 matérias do jornal Folha de S. Paulo, circunscritas à cobertura midiática da febre amarela, que foram produzidas em 42 edições seguidas. Ao identificar uma “epidemia discursiva” da versão urbana da doença, a pesquisadora decidiu se aprofundar na cobertura da imprensa em sua tese de doutorado. “Como eu trabalho com a perspectiva de que discurso produz fato social, eu concluí na dissertação que houve uma epidemia midiática com impactos muito importantes”, afirma ao pontuar também que, em pouco mais de 40 dias, foi aplicado quase que o total de doses de vacinas que são distribuídas para os Estados no total de um ano.

Jornalista por formação, com passagens pela Assessoria de Imprensa do Palácio dos Bandeirantes e depois pela Assessoria da Secretaria Estadual de Saúde de São Paulo, Cláudia se norteou pelos argumentos da autoridade sanitária na época, que afirmava que a chamada epizootia — conceito utilizado para qualificar uma enfermidade contagiosa que ataca um número inusitado de animais e que se propaga com rapidez — estava dentro da normalidade epidemiológica.

Epizootia vs. Epidemia

Foto: James Gathany via Wikimedia Commons

Foi a partir de um chamado “evento sentinela”, a morte de macacos no parque urbano de Brasília no final de 2007, que a epizootia foi identificada por meio de uma nota técnica da Secretaria Nacional de Saúde. Desde 2004, toda a região Centro-Oeste, explica Cláudia, passou a ser considerada uma região de transição da febre amarela. Ainda assim, o salto de uma epizootia notificada da versão silvestre da doença para a versão urbana foi tomado em janeiro, a partir da morte de uma vítima do vírus que esteve na região.

“Febre amarela é uma doença só, mas a silvestre e a urbana são diferentes. É a mesma doença, mas com uma epidemiologia diferente”, revela.

A partir daí, de acordo com sua análise, o noticiário deslocou discursivamente o evento de sua forma silvestre, espacialmente restrita e de gravidade limitada, para a urbana, de caráter epidêmico e potencialmente mais grave.

“Eu estava na Coordenadoria de Controle de Doenças na secretaria quando aconteceu a epizootia de febre amarela no verão de 2007 a 2008 e eu percebi que havia algo errado naquela cobertura”, relembra a jornalista. Em dezembro de 2007, “a Folha de S. Paulo deu uma nota sobre morte dos macacos. Depois uma segunda nota sobre pessoa com suspeita. E em janeiro começou o agendamento da febre amarela no jornal”, elenca ela. Somente naquele mês, reuniu um total de 75% do total de matérias publicadas sobre a chamada epidemia, até a primeira morte vacinal no final do mês.

Na época, a cobertura midiática impactou o sistema nacional de imunização e, para autoridades em Saúde, expôs a riscos desnecessários pessoas que se vacinaram contra a febre amarela incentivadas pelo discurso jornalístico e contrariando as recomendações do Ministério da Saúde, o que levou a quatro mortes por vírus vacinal. “A vacina da febre amarela é perigosa. Alguns países fazem uma relação custo- benefício e não recomendam”, aponta Cláudia.

“Discurso produz fatos”

“O discurso produz fatos. E um dos discursos poderosos é o discurso da mídia” – Arte: jornal.usp.br

Na tese de doutorado, “queria entender como aquela cobertura tinha produzido uma epidemia de febre amarela urbana”, explica ela. Trabalhando a partir de um aporte metodológico chamado Práticas Discursivas e Produção de Sentidos no Cotidiano, que coloca a linguagem no centro da produção de sentido, a especialista defende que, conforme essa visão, o mundo só existe a partir da linguagem que estabelece relações e fatos. “O discurso produz fatos. E um dos discursos poderosos é o discurso da mídia”, esclarece.

Buscando compreender o processo de produção dessa epidemia midiática e alguns de seus desdobramentos no cotidiano dos atores envolvidos no fenômeno, Cláudia entrevistou 14 pessoas de diferentes comunidades linguísticas, que dividiu em grupos: gestores; profissionais de saúde; assessores de imprensa; jornalistas da imprensa generalista; e usuários vacinados. A análise foi feita sob quatro eixos temáticos: o processo de produção da narrativa, o uso de repertórios de risco, a fabulação da vacina e a tradução do conhecimento técnico-científico.

Dando atenção especial aos profissionais da imprensa, Cláudia selecionou quatro jornalistas que haviam trabalhado em jornais de grande circulação na cobertura da epizootia da febre amarela. “Conversando com essas diferentes comunidades ficou claro que o agendamento da febre amarela pelos jornais tinha um recorte ideológico contra o governo federal vigente”, relata ela.

Do ponto de vista dos jornalistas, a especialista identificou elementos comuns ao chamado ethosjornalístico. A justificativa para a cobertura exacerbada veio a partir da identificação dos próprios processos e condições de produção da notícia em um grande jornal. “Pressionados pelo tempo, pela rotina, pela ideologia do veículo…”, enumera Cláudia.

Aliando a cobertura enviesada com a falta de preparo das autoridades públicas e o desarmamento conceitual do público que consumia as numerosas notícias sobre a dita epidemia, Cláudia enxerga um despreparo sistêmico no que se refere à cobertura de saúde no País.

“A ‘epidemia’ de febre amarela deixou claro que o modelo de comunicação pública no Brasil é instrumental”, discorre ela. “Eles (o Ministério da Saúde) cometeram todos os erros do ponto de vista de comunicação de risco de saúde. Demoraram para nomear um único porta-voz no Ministério da Saúde, por exemplo”.

“A comunicação pública no Brasil é feita para blindar gestores de plantão. Ela é reativa, não dá voz a outros atores no sistema público de saúde. O usuário não tem voz, o profissional de saúde não tem voz”, defende a pesquisadora.

Tempestade midiática

No que se traduziu como uma “tempestade perfeita” de despreparo e irresponsabilidade midiática, a ‘epidemia’ de febre amarela foi, para a jornalista, resultado do newsmaking — teoria que pressupõe que as notícias são como são porque a rotina industrial de produção assim as determina —, fortemente influenciada pela ideologia, já que os jornais eram majoritariamente de oposição ao governo federal e pela ideologia do profissionalismo.

Conforme Cláudia, o problema maior tem a ver com o modelo oligopolista de comunicação brasileira. A saúde coletiva, em sua visão, é constantemente desqualificada na imprensa. “Obviamente, a epidemia midiática de febre amarela é um caso extremo, mas ele é muito exemplar do tipo de produção discursiva que se tem na relação da comunicação pública com a comunicação privada”, afirma, ao defender que é preciso discutir outro modelo de comunicação pública de saúde.

Para a especialista, “temos que tirar de perspectiva essa visão romântica de que o jornalismo é um parceiro desinteressado das questões da saúde”. Dentre suas diversas conclusões, ela defende que “a imprensa não está a serviço da saúde”.

A tese de doutorado Epidemia midiática de febre amarela: Desdobramentos e aprendizados de uma crise de comunicação na saúde pública brasileira, orientada por Angela Maria Belloni Cuenca, do Departamento de Saúde Materno-Infantil da FSP, pode ser acessada neste link.

Mais informações: email claudia.malinverni@usp.br, com Cláudia Malinverni